Mitos e símbolos em festivais

Opinião

04-06-2025

# tags: Festivais , Eventos

Análise da dimensão simbólica e mítica dos festivais enquanto práticas rituais que articulam identidade, comunidade e transformação cultural.

Os atributos ambíguos e indeterminados da liminaridade são refletidos nos rituais de transição através de múltiplos símbolos, como, por exemplo, a comparação à morte, ao ser no útero, à invisibilidade, às trevas, à bissexualidade, ao deserto e a um eclipse do sol ou da lua.

A liminaridade não é a única manifestação cultural da communitas. Há outras áreas reconhecidas pelos símbolos que se agrupam em torno deles e as crenças que se ligam a eles, como “os poderes dos fracos”, ou os atributos sagrados de baixo estatuto, ou posição. Um exemplo é o bobo da corte. Essas figuras, representando os pobres e os deformados, parecem simbolizar os valores morais da communitas em oposição ao poder coercitivo dos governantes políticos supremos e desempenham papéis importantes em mitos e contos populares como representantes ou expressões de valores humanos universais.

Os símbolos também estão crucialmente envolvidos em situações de mudança social, tal como as performances de ritual. Símbolos são sistemas sociais e culturais dinâmicos, largando e recolhendo significado com o tempo e alterando na forma, com o objetivo produzir efeitos sobre estados psicológicos e comportamentos das pessoas expostas a eles ou obrigados a usá-los para a sua comunicação com outros seres humanos.

Os eventos da comunidade empregam uma coleção de símbolos que definem a comunidade e a representam para o mundo externo. Uma mitologia pública é concebida e estruturada por membros líderes da comunidade como uma representação simbólica da afirmada, acreditada e controlada identidade da comunidade. A maioria das configurações de festivais não é marcada por símbolos tão poderosos e facilmente reconhecíveis como aqueles inspirados pelas tensões raciais ou religiosas.

Os mitos são contos simbólicos do passado distante (muitas vezes primordiais) que dizem respeito à cosmogonia e cosmologia (a origem e a natureza do universo), podem estar conectados a sistemas de crenças ou rituais e podem servir para direcionar ações e valores sociais.

Quanto às finalidades do mito: «A primeira é a função mística... percebendo que maravilha o universo é, e que maravilha você é, e a experiência de reverência diante desse mistério... O segundo é uma dimensão cosmológica... mostrando-lhe qual a forma do universo é, mas mostrando-o de tal forma que o mistério vem novamente... A terceira função é a sociológica – apoiando e validando uma certa ordem social... Mas há uma quarta função do mito, e isto é o que eu hoje acho que todos se devem tentar relacionar - e essa é a função pedagógica, de como viver uma vida humana sob quaisquer circunstâncias.» (Campbell, citado por Bottorff, 2015, p.65)

Tomando como exemplo o caso dos festivais transformacionais, os caminhos separados, mas complementares, seculares e sagrados tendem a se unir através da arte e da música, que comunicam a subtileza da transcendência de forma eficaz.

O Burning Man transborda de relações de símbolo e significado, e carrega mitologias omnipresentes, narrativas, espiritualidade e conexão com a comunidade que alimentam a “vontade de significar”. Tendo em conta que a conexão consciente com os símbolos e significados - o que Jung poderia chamar de sincronicidade – pode levar a encontros epifânicos com o divino, pode-se argumentar que misturar o impulso de criatividade efémero com o mundo físico resulta num símbolo infundido pelo significado.

No Burning Man, para além de se dissolverem diferenças entre o sagrado e o profano, é criada uma relação complexa entre performance, artes visuais, práticas rituais e espiritualidade. A arte iguala-se à natureza, restaura-nos aos nossos estados mentais mais simples.

O Burning Man destaca-se pelo grande número e escala de arte interativa, música, dança e outros eventos. Anualmente, é escolhido um tema para ajudar a focalizar a mente num aspeto particular da construção de significado e direcionar a intenção daqueles que criam esculturas, pinturas, performances, danças, música e carros de arte, entre outros.

O absurdismo de Camus e Sartre é refletido no conglomerado de arte e pessoas exóticas. A experiência onírica que é o Burning Man guarda alguma semelhança com o estado de totalidade completa imaginado sob o transmodernismo. Nesse sentido, o acesso a esses estados de utopia é mítico e requer que as ferramentas do mito e do simbolismo sejam apreendidas.

Não são apenas aspetos específicos do Burning Man o material do mito, mas todo o fenómeno também assumiu proporções metamíticas. Por exemplo, a um nível micromítico, o carnavalesco elicia imagens dos mistérios dionisíacos, enquanto no nível macromítico a peregrinação ao Burning Man é em si uma jornada de herói.

Enquanto o Burning Man produz metamitologias, os participantes individuais criam as suas próprias mitologias pessoais. Esse processo reflete as narrativas de construção de significado incentivadas pelo transmodernismo e pela psicologia transpessoal.

Um mito pessoal é uma constelação de crenças, sentimentos, imagens e regras – operando em grande parte fora da perceção consciente – que interpreta sensações, constrói explicações e direciona o comportamento. As principais preocupações do mito são compreender o mundo natural de uma maneira significativa, encontrar um caminho para o futuro, estabelecer relações comunitárias seguras e encontrar o seu lugar no vasto mistério do cosmos.

As principais tarefas da psique são construir uma mitologia orientadora, assegurando que a mitologia abraça dimensões espirituais e áreas psicológicas mais tradicionais, e percebendo que uma mitologia orientadora vital e válida determina em grande parte o sucesso na vida.

Como outro exemplo, os festivais livres estavam abertos a todas as filosofias religiosas, mas mais orientados para a mitologia pagã, budista e hindu. Ideias pagãs, contraculturais e ecoespirituais dentro da cultura rave contemporânea são claramente contínuas com uma subcultura mais antiga.

 

João Carvalho
Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos (Beach Break®)

 

Bibliografia:

BOTTORFF, David Lane (2015) “Emerging Influence of Transmodernism and Transpersonal Psychology Reflected in Rising Popularity of Transformational Festivals”, Journal of Spirituality in Mental Health, 17:1, pp.50-74.

QUINN, Bernadette (2003) “Symbols, practices and myth-making: cultural perspectives on the Wexford Festival Opera”, Tourism Geographies, 5(3), pp.329–349.

TAYLOR, Ashley (2015) The Exploration of Transformational Experiences at Festivals. Dissertação de Mestrado, Lethbridge: University of Lethbridge.

TURNER, Victor (1974) Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual: an Essay in Comparative Symbology, Rice Institute Pamphlet-Rice University Studies, 60:3, pp.53-92.

TURNER, Victor (1969) “Liminality and Communitas: Form and attributes of rites of passage”, In The Ritual Process: Structure and Anti-Structure, New York: Aldine de Gruyter, pp.94-130.