Cerimonial e protocolo nas exéquias da Rainha Isabel II: Um funeral de Estado como símbolo de poder

Opinião

14-11-2022

# tags: Caso de Estudo , Protocolo , Eventos

“I declare before you all that my whole life whether it be long or short, shall be devoted to your service and the service of our great imperial family to which we all belong.”

Rainha Isabel II, no seu 21º aniversário, 1947

A 8 de setembro de 2022, no Reino Unido, acontece a primeira transferência de poder monárquico em 70 anos. O Palácio de Buckingham emite um comunicado informando do falecimento da Rainha Isabel II (“The Queen died peacefully at Balmoral this afternoon.”; saber-se-ia, mais tarde, que teria falecido às 15h10 hora local, de morte natural). O mundo recebe a notícia talvez sem surpresa, mas com enorme consternação. A monarca, figura ímpar e fascinante, integra a história, de forma indelével, muito para além do seu reino e do seu reinado.

Enquadramento

De imediato, o complexo e confidencial plano “London Bridge” (conhecido pela frase de código “London Bridge is down”, expressão a utilizar pelo Secretário Privado da Rainha, Sir Edward Young, ao comunicar por telefone a morte da monarca à primeira-ministra Liz Truss), criado na década de 60 do século passado, entra em ação. Este plano, detalhadíssimo e em permanente atualização ao longo do tempo, envolve várias entidades: o primeiro-ministro; a Igreja de Inglaterra; a “Metropolitan Police Service”; as Forças Armadas Britânicas; os “Royal Parks”; os “London boroughs”; a “Greater London Authority”; o “Transport for London”. Não é, contudo, o único. Refira-se o designado “Operation Unicorn”, determinando o que sucederia caso a rainha morresse na Escócia, o que veio a acontecer, bem como todo o planeamento de proclamação do Rei Carlos III. Vários Estados da Commonwealth criaram, também, os seus próprios planos.

Considerando que informação factual e comentários foram sendo apresentados pelos órgãos de comunicação social, opta-se neste texto por tratar os aspetos de natureza protocolar.

1. O luto nacional no Reino Unido

Imediatamente após a morte da chefe de Estado (8/09), inicia-se o período de luto nacional, considerado como tempo de reflexão, com término após o funeral (19/09). Deste período, do ponto de vista protocolar, importa recordar que: (i) as bandeiras (“Union Jack”) nas residências reais, nos edifícios governamentais e nas instalações militares são colocadas a meia‑haste. Exceção para o “Royal Standard”. Outra exceção tinha acontecido no dia do “Accession Council” (10/09), quando o rei foi formalmente proclamado; (ii) quanto a tributos florais, foi solicitado que não fossem enviadas flores para o local do funeral, residências reais e instalações governamentais.

Em Londres, foi criado um memorial para colocação de flores em Green Park e junto a Buckingham Palace. Noutros locais (Windsor, Sandringham, Belfast, Edimburgo, Balmoral, Cardiff) também foram criadas zonas com esse propósito; (iii) no que respeita a Livros de Condolências, nas residências reais não existiram livros físicos, mas sim digitais, nomeadamente no website da família real. Nas Missões Diplomáticas e Consulares no estrangeiro foram abertos Livros de Condolências.

Qualquer instituição poderia abrir um Livro de Condolências. A norma e o bom gosto indicam que o livro deveria ser colocado sobre uma mesa coberta com uma toalha branca, uma fotografia da monarca e um arranjo de flores brancas. A caneta é opcional, mas aconselhável.

2. Feriado nacional

A 19 de setembro, dia do funeral (“State Funeral”), foi feriado nacional, decretado pelo rei Carlos III.

3. As características de um “State Funeral” no Reino Unido

Um “State Funeral” acontece aquando do falecimento do chefe de Estado, neste caso monarca, obedecendo a regras de cerimonial e protocolo muito precisas. Contudo, algumas outras personalidades de enorme relevo como, por exemplo, Sir Winston Churchill tiveram, igualmente, direito a um “State Funeral” (o de Sir Winston Churchill fora o último realizado até ao de Isabel II).

Note-se que os britânicos distinguem o conceito de “State Funeral” (organizado pelo Earl Marshal) do conceito de “Ceremonial Funeral” (organizado pelo Lord Chamberlain). Um “State Funeral” engloba rituais de grande pompa, além das celebrações religiosas e das cerimónias militares.

4. O programa do “State Funeral”, os convidados e o respetivo “seating”

No Westminster Hall, em Londres, às 06h30 BST, é oficialmente encerrado o período de câmara ardente; mais tarde, a urna é transportada no “State Gun Carriage” até Westminster Abbey. No exterior, vai acontecendo o desfile militar, considerado o maior desde o funeral do Rei George VI, envolvendo mais de quatro mil elementos de diversos ramos das Forças Armadas, quer do Reino Unido, quer da Commonwealth. Este desfile é unanimemente considerado como um dos mais relevantes momentos de cerimonial, traduzindo o grande apreço que a monarca devotara às Forças Armadas ao longo de todo o seu reinado.

A celebração religiosa tem início às 11h00 BST, em Westminster Abbey (abadia onde a rainha casara e fora coroada), presidida pelo Arcebispo de Cantuária. Nos dias anteriores, o corpo da Rainha Isabel II estivera em câmara ardente, tendo sido velado em diferentes locais, sendo que só em Westminster Hall permaneceu quatro dias, calculando-se que muito perto de um milhão de pessoas lhe tenham prestado homenagem direta, além das vigílias públicas e privadas.

O denominado “Lying-in-State” consiste na ocasião formal em que a urna é colocada numa zona central e elevada, em Westminster Hall, de forma a permitir que o público em geral preste a sua (última) homenagem, antes da cerimónia fúnebre.

Em cada esquina desta zona elevada estiveram, 24 horas por dia, elementos do “Sovereign’s Bodyguard”, “Foot Guards” ou “Household Cavalry Mounted Regiment”.

Esta honra é concedida a um chefe de Estado, a uma rainha consorte e, por vezes, a antigos primeiros-ministros.

O início do “Lying-in-State” da Rainha Isabel II foi precedido por uma celebração religiosa, às 15h00 BST, a 14 de setembro.

Após a primeira celebração religiosa, o corpo foi transportado e, então, sepultado em St. George’s Chapel, em Windsor Castle, local onde, igualmente, aconteceu uma celebração religiosa, mais restrita e mais breve (“Commital Service”).

A um “State Funeral” assiste-se por convite. Chefes de Estado e/ou de Governo da Rússia, Síria, Afeganistão, Bielorrússia, Myanmar e Venezuela não foram convidados. A Coreia do Norte e a Nicarágua foram convidadas a enviar representantes diplomáticos, apenas.

Estiveram presentes, além naturalmente dos membros da família real e da família alargada da rainha, diversas casas reais reinantes e não reinantes, de todo o mundo, chefes de Estado e de Governo, diplomatas, inúmeros líderes e personalidades nacionais, da Commonwealth e mundiais, gerando uma operação de segurança jamais vivenciada em Londres.

A partir das 08h00 BST começam a chegar convidados a Westminster Abbey, acedendo por duas entradas diferentes, naturalmente principiando o processo de entrada pelos protocolarmente menos relevantes, que foram sendo sentados nos seus respetivos lugares, começando da entrada principal em direção ao centro da abadia, ou seja, de trás para a frente. Verifica-se, portanto, que os convidados estavam segmentados por níveis protocolares. Por exemplo, aquando da sua vez, primeiro entraram os chefes de Governo, depois os chefes de Estado (estima‑se que ambos os grupos totalizavam cerca de cem personalidades), seguidamente os monarcas reinantes. Dentro de cada segmento foi aplicado o critério de antiguidade no cargo. Maioritariamente, os chefes de Estado foram acompanhados dos respetivos cônjuges. As entidades detentoras de cargos de maior estatuto ou maior posição protocolar sentaram‑se em zonas centrais da abadia.

Refira-se que alguns segmentos de convidados, nomeadamente os antigos primeiros-ministros britânicos, entraram em cortejo, organizado também pelo critério de antiguidade no cargo, ficando assim os que mais recentemente exerceram o cargo no final do grupo.

Olhando de frente para o altar, do lado direito, sentou-se a família real, com as personalidades alinhadas em ordem linear de acordo com as suas respetivas precedências. Do lado esquerdo, localizavam-se os membros das casas reais, reinantes e não reinantes, igualmente em ordem linear, por casa real, na seguinte ordem: Dinamarca (atualmente a Rainha Margarida II é a única monarca mulher reinante e, agora, a que há mais tempo se encontra no exercício do cargo), Suécia, Países Baixos, Espanha, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Mónaco, Grécia, Roménia, Jordânia, Japão e outras.

No final da celebração religiosa, momento de inquestionável importância dentro de toda a cerimónia do “State Funeral”, segue-se um instante de silêncio e o hino nacional é cantado.

Imediatamente a seguir, a urna segue em cortejo em direção a Wellington Arch, a partir de onde, já transportada no carro funerário real, segue para Windsor, onde chega às 16h00 BST, iniciando-se então a segunda celebração religiosa do dia, esta mais breve e com assistência mais reservada. Terminando esta celebração e, portanto, o “State Funeral”, a urna da Rainha desce até ao “Royal Vault”, lugar onde descansam eternamente outros monarcas (George III, IV e V, William IV e outros), bem como o Príncipe Philip, Duque de Edimburgo, seu marido.Às 19h30 BST realizou-se o sepultamento, em momento privado na “King VI Memorial Chapel”.

“People are touched by events which have their roots far across the world.”

Rainha Isabel II

5. A bandeira que cobre a urna

“The Royal Standards of the United Kingdom” é a designação atribuída a duas bandeiras semelhantes usadas pelo/a monarca enquanto soberano/a do Reino Unido, nas instalações da Coroa e nos Territórios Ultramarinos Britânicos. Duas bandeiras porque existem duas versões, uma das quais se destina a uso em Inglaterra, Irlanda do Norte, País de Gales, dependências da Coroa e Territórios Ultramarinos Britânicos, e outra para uso na Escócia.

São bandeiras de armas, apresentam o escudo das Armas Reais. Esta bandeira é hasteada quando o/a monarca se encontra numa determinada residência real, em carro, em navio, em avião, bem como em Westminster Abbey aquando da cerimónia de Abertura do Parlamento (aliás, a única igreja onde esta bandeira pode ser hasteada).

Foram utilizadas, em momentos diferentes, as duas versões da bandeira: (i) “The Royal Standard” para uso na Escócia, cobrindo a urna de Balmoral até Edimburgo e, daí em diante, o (ii) “The Royal Standard” para uso em Inglaterra, Irlanda do Norte, País de Gales, dependências da Coroa e Territórios Ultramarinos Britânicos.

Esta bandeira, em qualquer uma das suas versões, na atualidade, só pode ser usada pelo Rei Carlos III.

Refira-se que esta bandeira nunca é colocada a meia-haste na medida em que o trono nunca se encontra sem ocupante.

6. Dress code no “State Funeral”

No âmbito das exéquias da Rainha Isabel II, observou-se o recurso ao rigoroso luto, como expectável e protocolarmente correto. Nas exéquias da monarca britânica, e, para além dos uniformes militares, os trajes civis que o protocolo designa como fato escuro e fraque foram o dress code que vigorou.

No vestuário masculino, a designação fato escuro traduz-se em fato (preto, azul ou cinza muito escuros), camisa branca e gravata preta, e no vestuário feminino em peças e modelos formais, discretos, com uso de chapéu e luvas. Exige-se moderação na utilização de acessórios e sobriedade em aspetos como penteado e maquilhagem. O uso de joias está limitado, nesta circunstância, às pérolas e aos brilhantes. As pérolas são extraordinariamente simbólicas, traduzem respeito, sabedoria e pureza, destacando-se precisamente pela ausência de cor. Na Antiguidade Clássica, os gregos acreditavam que as pérolas se formavam a partir de lágrimas dos deuses. Além da simbologia, são o expoente máximo da elegância.

A própria rainha usara pérolas ao longo de toda a vida e nas situações de luto, como o funeral de seus pais e marido.

No Reino Unido a tradição do uso de pérolas no luto remonta ao reinado da Rainha Victória, que ficou viúva aos 42 anos. O seu período de luto durou 40 anos, ao longo dos quais só usou vestuário negro.

7. O arranjo floral sobre a urna

Sobre a urna, no dia do funeral, um arranjo floral que traduz outra enorme simbologia. Estas flores e folhagem eram provenientes dos jardins de três residências reais: Buckingham Palace, Clarence House e Highrove.O alecrim simboliza a lembrança. A murta, o antigo símbolo de um casamento feliz, cortada de uma planta que fora cultivada a partir de um raminho de murta do “bouquet” de casamento da rainha em 1947. O carvalho inglês, símbolo nacional de força, homenageando o carácter e ímpar sentido de dever da rainha.

Este arranjo de flores continha uma nota manuscrita e assinada pelo Rei Carlos III, com a mensagem: “In loving and devoting memory”.

8. A “regalia” sobre a urna

Ao longo de todo o período de câmara ardente, sobre a urna está a “State Imperial Crown” peça emblemática das Jóias da Coroa Britânica; a belíssima coroa está cravejada de três mil pedras, maioritariamente diamantes, mas também pérolas, safiras, esmeraldas e rubis. A coroa representa majestade, soberania, estatuto e riqueza. Esta coroa data de 1937, criada para a coroação do Rei George VI, e foi usada pela Rainha Isabel II ao longo do seu reinado aquando da cerimónia de Abertura do Parlamento, exceto nos últimos anos em que o seu peso acabou por impedir que a rainha a colocasse.

O cetro simboliza o poder do soberano e, este, foi usado em todas as coroações da Monarquia Britânica desde 1661. A orbe representa espiritualidade, fé e relação com Deus e é um objeto oferecido aos monarcas aquando da sua coroação, como símbolo de poder, proveniente de Deus, e responsabilidade que daí advém. Destaque, porém, para a bandeira “The Queen’s Company Grenadier Guards Flag” (pequena bandeira militar em vermelho escuro; os “Grenadier Guards” são o regimento de infantaria de elite, remontando ao século XVII, e cumprem uma função cerimonial), colocada sobre a urna pelo novo Monarca, imediatamente antes da descida para o “Royal Vault”, bem como o “Wand” (vara de ofício), quebrado e colocado sobre a urna pelo Lord Chamberlain. Ambos objetos são sepultados com a urna, na medida em que representam o fim do reinado desta monarca.

Conclusão

Poderá um (grande) Funeral de Estado consistir numa cerimónia magnífica? Poderá uma cerimónia ser perfeita? Do ponto de vista de Cerimonial e Protocolo, assistiu-se a um acontecimento irrepetível, detalhadamente coreografado, irrepreensivelmente organizado, perfeitamente sincronizado, um símbolo de poder que não deixou ninguém indiferente. Totalmente digno de uma monarca que criou a sua própria história, que será eternamente recordada e que encerra um ciclo da história da Humanidade.

“When life seems hard, the courageous do not lie down and accept defeat; instead, they are mall the more determined to struggle for a better future.”

-Rainha Isabel II





Foto de abertura: © Susana de Salazar Casanova

© Cristina Fernandes e Susana Casanova Opinião