Communitas, coesão social e sociabilidade em festivais

Opinião

03-08-2022

# tags: Caso de Estudo , Festivais , Eventos

A mediação de estrutura, communitas, espírito do lugar, participação, consciência, transformação e sociabilidade – discursos antropológico e sociológico.

Estrutura e communitas

Victor Turner identifica dois modelos contíguos e intercalados:

1) a sociedade como sistema estruturado, diferenciado e hierárquico de posições político-legal-económicas, separando os homens de “mais” ou “menos”; e

2) a sociedade pouco ou nada estruturada que surge no período liminar, comitatus, comunidade, ou mesmo comunhão de indivíduos iguais que se submetem à autoridade geral dos anciãos rituais.

A utilização de "communitas" em vez de "comunidade", diferencia essa modalidade de relacionamento social de uma "área de vida comum". A distinção entre estrutura e communitas não é simplesmente o familiar entre “secular” e “sagrado”. Por sagrado, Turner não só refere a humildade dos ritos de passagem em que há trocas de posições societais, implicadas na liminaridade, como o laço humano essencial e genérico dessa troca que indica como indispensável para a sociedade.

A communitas tem uma qualidade existencial, tem um aspeto de potencialidade, gera símbolos, metáforas e comparações, produz arte e religião, invade os interstícios da estrutura, na liminaridade; nas bordas da estrutura, na marginalidade; e de baixo da estrutura, na inferioridade; é sagrada porque transgride ou dissolve as normas, é acompanhada de experiências sem precedentes, é o produto da racionalidade, da volição e memória humanas.

Mitos, símbolos, rituais, sistemas filosóficos e obras de arte são gerados, frequentemente, em condições estruturais de liminaridade, marginalidade e inferioridade, fornecendo padrões e modelos que reclassificam periodicamente a realidade da relação do homem com a sociedade, natureza e cultura, incitando os homens à ação e ao pensamento, contendo, cada uma delas, um caráter multivocal, inúmeros significados, e a capacidade de transportar as pessoas por muitos níveis psicobiológicos.

A dialética gerada entre o imediatismo da communitas e a mediação da estrutura, apesar de opostos indissociáveis, é uma evidência histórica de qualquer grande sociedade ao nível de oscilação política. Enquanto nos ritos de passagem os homens são libertados da estrutura em communitas, apenas para que retornem à estrutura de forma revitalizada, o exagero da estrutura pode levar a manifestações patológicas de communitas fora, ou contra, “a lei”, pelo que a maximização da communitas provoca a maximização da estrutura, originando, então, a produção de esforços revolucionários para renovadas communitas. A transição entre estes estados é realizada através de um limbo sem qualquer estado.

Communitas refere-se a um encontro pessoal com um sentimento de união que é existencialmente e espontaneamente experienciado. Envolve êxtase coletivo, um sentimento de amor espontâneo e solidariedade que pode surgir dentro de uma comunidade de iguais, no entanto, não é uma escolha consciente. A experienciação desse sentimento de unidade é desejado e contribui para a transformação, sendo essencial para o bem-estar e felicidade.

A comunhão de pessoas com os seus deuses, antes da institucionalização da religião, era obtida através de communitas nas quais alcançavam uma experiência de êxtase em grupos através da celebração ritual que unia a comunidade e dava uma sensação de segurança, confiança mútua e uma identidade de grupo.

A ligação entre eventos e communitas não é unânime. Enquanto essa experiência, para Turner, estava correlacionada tanto com um evento como com a estrutura social, a capacidade de avaliar eventos em termos de communitas foi perdida ao ser geralmente generalizada.

Enquanto communitas tem uma qualidade de fluxo, surgindo de forma espontânea, imprevista e sem regras, entre indivíduos, o fluxo é uma experiência individual. Fluxo aparenta ser uma das formas de voltar a transformar a estrutura em communitas.

Communitas, civitas e humanitas

Para as pessoas, a essência do significado é totalidade, relacionamento e conexão, ou communitas, civitas e humanitas. O mundo necessita de uma transformação comunitária consciente de serem instrumentos de mercado para o cultivo consciente de bem-estar inclusivo, que faça face à desconexão entre a humanidade e o mundo natural, e connosco próprios, em termos de necessidades básicas, de profundo significado, de parentesco, de conexão, de rituais de conexão comunitária, e sagradas. Para tal, é necessário compreender tanto o espírito do lugar, quanto o papel de mudança social entre espectador e participante, e a sua relação a níveis de desenvolvimento de consciência e a nível transpessoal.

Espírito do lugar

O espírito do lugar pode ser desenvolvido intencionalmente a partir da compreensão da natureza do lugar sagrado (ambientes naturais, construídos e mentais), e da interação humana com este, captando necessidades de bem-estar da comunidade, o que contribui para promover melhores relações humanas e com o planeta. Existem vários exemplos e ferramentas para criar intencionalmente uma comunidade autêntica, usando a programação espacial e celebratória como meios para essa transformação, com requisitos a níveis arquitetónicos, energéticos e cósmicos, essenciais para a verdadeira transformação, para a cura e para os dons da vida. Ao longo do tempo, a celebração deu um veículo para o desenvolvimento humano, servindo para unir pessoas, comungar com o divino, e enquanto catalisador para as ações dos deuses na terra, numa experiência íntima do espírito do lugar, em que a linha homem/céu/terra se mantém aberta através da consciência coletiva, da personificação do simbólico e da diretiva de intenção, integrando as dimensões horizontais e verticais da experiência, tal como nos tempos antigos, graças à sua interação cultural com a tradição, ritual, eternas estações de mudança, e entendimentos cósmicos.

Participação e desenvolvimento da consciência

A história da celebração mostra como o homem se separou do divino, como a dualidade se reforçou, e ilumina como podemos restaurar a celebração para um recomeço. A totalidade pode ser alcançada entrando em ressonância com a comunidade, terra ou outras formas de vida, podendo ajudar a restabelecer uma relação verdadeiramente simbiótica e autêntica, de experimentação, para o transcendente benefício de todos.

O nosso envolvimento com os outros atravessa seis estágios progressivos: retirada, rituais, passatempo, atividades, jogos e intimidade. Ao cultivar intimidade incondicional com o que nos rodeia, as nossas experiências mais autênticas nos trarão paz e o sentido de transcendência e redenção que procuramos. As celebrações podem contribuir para o bem maior ao serem projetadas para incentivar a experiência autêntica das comunas, a comunicação com o transcendente, de forma memorável. A necessidade humana de experienciar a unidade de autênticas communitas faz com que pessoas estejam a procurar experiências em proporções profundas, pessoais e cósmicas, iniciando soluções para a experiência transformadora pré-cristã.

Em alguns festivais, está a surgir um regresso autêntico à experiência grupal de êxtase. Os efeitos de eventos bem concebidos e organizados podem revelar um todo coerente a partir do qual se podem indicar melhores práticas e cultivar as qualidades integrais da comunidade que correspondem aos valores centrais e aos níveis de desenvolvimento da consciência dos seus cidadãos.

Quando as celebrações incluem pessoas diversas, existem experiências de unidade tanto a nível psicográfico heterárquico como hierárquico, apesar de que possam ser distintas entre comunidades distintas. Eventos que apresentam criatividade, espontaneidade e tolerância podem apelar para aqueles cujos níveis de consciência são desenvolvidos em níveis mais elevados, limitando o domínio transpessoal e relatando experiências de pico mais frequentes. Cada nível de desenvolvimento pode responder ao tipo de evento com o qual o seu eu pode ressonar melhor.

A programação de eventos deverá alcançar o público específico que ressoará com esse nível de consciência, apesar de que pessoas em níveis mais baixos não se consigam identificar com o nível a que esses eventos são programados, o que sugere que o que cada um está a procurar para a realização pessoal é um indicador do seu nível de consciência ou hierarquia de necessidades. Embora não se possa provar, poderão ocorrer sincronizações de ondas cerebrais – ou ressonâncias mentais - em ambientes de celebração grupal.

Modelo do templo do centro da cidade e programação

O caso do modelo do templo do centro da cidade é um exemplo de como se pode dar resposta às necessidades de experiência e identidade comunitárias, de fortalecimento do espírito comunitário e da identidade cultural, com os benefícios da celebração nesse centro: são uma indicação da vibração comunitária; contribuem para a qualidade de vida; promovem a participação cidadã; possuem benefícios económicos; podem criar ou melhorar infraestruturas; melhorar a imagem e identidade de uma comunidade.

Apesar das celebrações servirem como catalisadores para o desenvolvimento comunitário, este valor sério para a comunidade poderá não ser percebido, pois a imagem que prevalece para a liderança comunitária não esclarecida pode ser de que mera diversão, frivolidade e despreocupação não são prioridades no desenvolvimento da comunidade.

Apesar dos festivais atuais incluírem quase tudo o que as pessoas desejam (música, dança, trajes e máscaras, bebidas que alteram a mente), apresentam uma superficialidade enganosa da verdadeira experiência que, apesar de fornecerem experiências de camaradagem, pertença, igualdade e libertação, não os conecta com os deuses, pois a experiência de evento moderno ainda é a de espectador. Será necessário criar eventos autênticos para facilitar a experiência aprimorada grupal, projetando o contexto e recipiente para maximizar a possibilidade de experiências no estágio liminar da unidade, pelo que é importante identificar o espírito do lugar na tomada de decisão, o que requer entendimentos arqueológico-espirituais, antropológicos e psicográficos, assim como a identificação da sua finalidade que poderá ajudar na promoção da singularidade da comunidade, proporcionando continuação e construindo um significado importante para os cidadãos. Só após esta descoberta é possível desenvolver criativamente um festival, incluindo tema, local e programação.

Transformação e mudança social

Enquanto a perfeita integração da vida – a autêntica oportunidade para communitas, civitas e humanitas – vem do cultivo da existência horizontal e vertical, a aceitação do nosso papel a partir de uma perspetiva elevada de consciência pode contribuir para verdadeiras conexões, necessárias para a transformação, que melhor forma de o fazer senão através de celebrações, que são comemorações, formas de fixar o tempo e o espaço, e criar laços comuns? A nossa sobrevivência pode depender da nossa capacidade de nos elevarmos a essas ocasiões, pelo que somos chamados a nos tornarmos plenamente conscientes e a transcender as rotinas insensatas, sendo ferozes o suficiente para nos transformarmos a nós próprios e ao mundo à nossa volta, através de uma participação que combina, conscientemente, espírito, lugar e experiência, na criação de comunidade e da celebração.

Os estados de communitas são eles próprios transformadores na medida em que vão para o coração do ser de cada pessoa e procura nela algo profundamente comum e partilhado. As comunidades que experienciam communitas são não estruturadas ou estruturadas de forma rudimentar e são compostas por uma comunidade de indivíduos iguais, permitindo a experimentação desconfiada, investigadora e interrogadora à volta da ordem moral vigente. Exercendo profunda influência sobre os envolvidos, despertando forças como o conhecimento mitológico da sociedade sobre si mesma, assim como emoções intensas nas suas consciências, os rituais de caráter sagrado podem originar communitas, o que poderá ser comparado com os efeitos da dança ritual e da experiência coletiva em festivais de música.

Antiestruturas como festivais de música agem como componentes de mudança social e as experiências humanas excecionais, transformadoras, místicas e transcendentes no contexto das experiências de communitas podem ser catalisadoras para tal mudança a nível individual e coletivo. Tanto a definição de communitas de Turner, como a efervescência coletiva de Durkheim contêm conceitos de unidade e experiência mística.

As condições para a efervescência coletiva são a intimidade, o imediatismo e a intensidade que envolve vontade e intenção, com o potencial de criar novas noções de sociedade que, no que lhes concernem, permitem um reajuste das representações coletivas societais. Nos contextos das experiências humanas excecionais, transformadoras, místicas e transcendentes, o potencial coletivo de desenvolvimento transpessoal, experimentado como o inconsciente coletivo de Jung, pode ser uma característica de festivais que permitam agir como recipientes de possibilidades transformadoras.

Sociabilidade

Os festivais podem ser entendidos como locais alternativos de consumo, pelos quais o indivíduo pode estar a consumir a experiência sociável para fins autênticos de autocompreensão. A teoria da sociabilidade de Maffesoli sugere que, na vida pós-moderna, os interesses da pessoa formam as identidades, contribuindo para a formação de neotribos que surgem como resposta ao processo de desindividualização e baseadas num sentimento coletivo, integral para o que é a sociabilidade. Pode ser formada uma comunidade emocional efémera para iluminar a atualidade, apesar da sua natureza ser fluída e não estática, com formas e formatos em constante mudança, baseada em intangíveis como companheirismo e participação em experiências. Os festivais são um exemplo clássico de fluidez, encontros ocasionais e dispersão, características das neotribos, o que nos dá alguns insights sobre a sociabilidade.

Os processos de mercantilização podem ser subvertidos para realizar o self autêntico, tanto ao nível dos processos de construção de identidade como de socialidade consumidora, essenciais para o eu. Enquanto projetos modernistas enfatizam a autenticidade da experiência, teóricos pós-modernos priorizam a realização do Eu autêntico.

A socialidade da vibe aproxima a sensação indiferenciada de “communitas espontâneas” numa conjuntura social em que participamos totalmente, que envolve a dissolução da subjetividade em que nos tornamos outro para o próprio eu.



Por João Carvalho, Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos (Beach Break®).



Bibliografia:

BANNERMAN, Brittany A. (2016) Transformative, exceptional human experiences at music festivals: a transpersonal phenomenological exploration, Dissertação de Mestrado, Lethbridge: University of Lethbridge.

BIAETT, Vernon (2013) Exploring the On-site Behavior of Attendees at Community Festivals: A Social Constructivist Grounded Theory Approach, Tese de Doutoramento: Arizona State University.

HASTINGS, Kathy A. (2015) Communitas, Civitas, Humanitas: The Art of Creating Authentic Sense of Community and Spirit of Place, Tese de Doutoramento: Holos University.

MATHESON, Catherine M. (2005) “Festivity and Sociability: A Study of a Celtic Music Festival”, Tourism Culture & Communication, 5, pp.149-163.

ST. JOHN, Graham (2015) “Introduction to Weekend Societies: EDM Festivals and Event-Cultures”, Dancecult: Journal of Electronic Dance Music Culture, 7:1, pp.1-14.

TURNER, Victor (1974) Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual: an Essay in Comparative Symbology, Rice Institute Pamphlet-Rice University Studies, 60:3, pp.53-92.

TURNER, Victor (1969) “Liminality and Communitas: Form and attributes of rites of passage”, In The Ritual Process: Structure and Anti-Structure, New York: Aldine de Gruyter, pp.94-130.

Crédito da imagem: MEYRICK, Samuel & SMITH, Charles (1814) "The Grand Conventional Festival of the Britons", in The Costume of the Original Inhabitants of the British Islands.