Afinal o que é uma quebra de protocolo?

15-11-2016

Nos últimos tempos temos ouvido falar muito em quebras de protocolo. Aparentemente, os jornalistas portugueses passaram a ser especialistas nesta matéria e não passa uma semana sem que alguém descubra que “o Presidente quebrou o protocolo”. O protocolo estaria feito em pedaços se isto fosse verdade.

Tudo começou no dia em que tomou posse o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. A decisão de fazer o percurso a pé desde a casa onde vivera com os pais até à Assembleia da República foi considerada uma quebra de protocolo proclamada aos quatro ventos. Ora o guião do cerimonial elaborado pela Divisão de protocolo da Assembleia da República para esta cerimónia apenas menciona que “ O Presidente da República eleito chega ao palácio de S. Bento às 9.35.” Em nenhum momento aparece determinado que “sai da viatura na base da escadaria principal”.

Como é óbvio o guião foi elaborado com conhecimento de que o presidente eleito chegaria pelo seu próprio pé ao local da recepção solene, mas a comunicação social não foi informada para não estragar o efeito surpresa. Os jornalistas nunca tinham visto um presidente eleito chegar pelo seu pé ao palácio de São Bento e pensaram erradamente que estavam a assistir a uma quebra do protocolo. Mas o guião a que todos os participantes nesta cerimónia solene tiveram acesso foi cumprido escrupulosamente.

O actual presidente tem um estilo muito próprio de exercer o seu mandato e, ao abandonar a rigidez e a distância que caracterizaram a actuação do seu antecessor, despertou o interesse da comunicação social por tudo o que possa ser uma alteração do protocolo presidencial. A partir desse dia, muitos foram os títulos sobre situações em que o presidente “quebrara” mais uma vez o protocolo: ora por se ter aproximado dos populares que o aguardavam, saindo do tapete vermelho, ora por ter abraçado as porteiras parisienses que acabara de condecorar, ora ainda por outros milhares de gestos de espontaneidade da chamada “presidência de afectos”. Em nenhuma destas situações o Presidente quebrou o protocolo, em meu entender, tendo apenas conseguido surpreender os jornalistas com a sua espontaneidade e a proximidade que busca ter com os eleitos.

Aliás bastou observar, no próprio dia da tomada de posse, o seu comportamento quando lhe foram prestadas honras militares. Ao passar revista à Guarda de Honra percebia‑se que este presidente cumpre rigorosamente o protocolo. Lembro‑me de ter pensado que era a primeira vez que eu via alguém passar em revista as tropas perfiladas, olhando para cada elemento do batalhão à medida que avançava, como deve ser. E recordei as trapalhadas do presidente Hollande no dia da sua tomada de posse, ou porque ninguém lhe tinha dado indicações sobre o protocolo desse dia ou porque ele decidira ignorá‑las.

Mas vamos por partes. Em primeiro lugar, o que é o protocolo? Em segundo lugar: protocolo e cerimonial são uma e a mesma coisa? E, por último, como se quebra o protocolo?

O cidadão comum associa o protocolo a situações solenes e um pouco teatrais, em que pessoas com aspecto importante e trajes formais parecem obedecer a uma “marcação” pré‑estabelecida, que evita, quando evita, atropelos, precipitações e choques.

Na realidade, a expressão protocolo aplica‑se ao ordenamento e organização dos actos das instituições oficiais, ou seja, do protocolo oficial. Esse protocolo de Estado implica normas, legislação e regras, que só existem no âmbito oficial. Ora essas normas, e essa legislação, nunca poderiam ser ignoradas por um presidente que é um jurista de grande renome. O que mudou de facto com esta presidência foi o cerimonial do Estado, que passou a ter menos pompa, e menos circunstância.

Em resumo, o protocolo é o conjunto de normas e documentos legais que regem os procedimentos das cerimónias oficiais enquanto o cerimonial é a forma como estas cerimónias são encenadas, variando ao sabor dos tempos e das circunstâncias.

Quebra‑se o protocolo quando se contraria o que está legislado. Quando um empresário organiza uma cerimónia de inauguração e não observa a lista de precedências determinada pelo artº 7º da lei nº40/2006, ordenando mal as autoridades presentes está a quebrar o protocolo. Ou quando um governante não trata a bandeira nacional como um símbolo pátrio e a transforma num pano, está a contrariar o que está disposto no decreto‑lei nº150/87, de 30 de Março, e a quebrar o protocolo. Erro que o nosso Presidente nunca comete por ter passado a usar o pavilhão presidencial para descerramento de placas em cerimónias por ele presididas.

Aliás a única vez que vi o nosso Chefe de Estado quebrar o protocolo foi quando no dia 10 de Junho de 2016 convidou o Presidente francês a impor insígnias a cidadãos portugueses durante uma cerimónia de investidura em Paris. Ora, segundo o artigo 50º da Lei das Ordens Honorificas Portuguesas “o Presidente da República pode deferir ao Presidente da Assembleia da República ou ao Primeiro‑Ministro a imposição de insígnias”. Pode ainda, “por expressa delegação sua, encarregar da imposição das insígnias os Chanceleres das respectivas Ordens, os membros do Governo, os representantes da República nas Regiões Autónomas, em actos a realizar nelas, os Chefes de Estado‑Maior ou o Embaixador de Portugal no país onde a cerimónia ocorra”. Mas não pode, ou melhor, não deve, deferir essa imposição de insígnias em mais ninguém para além dos expressamente mencionados naquele diploma. Terá sido um acto de cortesia para agradecer a presença do chefe de Estado francês numa cerimónia presidida pelo Chefe de Estado português. Não teve muita importância, mas houve de facto uma quebra do protocolo.

O protocolo não deveria ser quebrado para não contrariar a lei, pondo em causa as instituições e a boa imagem do Estado. Mas o cerimonial pode e deve ser flexível. Temos de aplicar as normas adaptando as regras às circunstâncias e à personalidade das autoridades que vão estar em determinada cerimónia. Há uns anos não havia cerimónia sem uma mesa de presidência, hoje é raro encontrarmos um palco com essa mesa, preferindo as autoridades ficar sentadas ou na primeira fila da plateia ou em cadeirões no palco, assim diminuindo a sensação de distância entre eleitos e eleitores. O protocolo é a norma e o cerimonial é a forma.

Isabel Amaral

Presidente da Associação Portuguesa de Estudos de Protocolo