Chef Hélio Loureiro: Eu não faço arte, faço cozinha

12-11-2019

O termómetro marcava perto de 30ºC quando nos encontramos ao final da tarde para conversar com Hélio Loureiro. O local no Porto, escolhido por ele, foi o Soundwich, no Parque da Cidade. Na ementa, uma das célebres sanduíches da casa foi pensada por ele e tem o seu nome. Mas o calor pedia mais líquidos, e escolheu‑se por isso uma limonada, que fomos bebendo.A entrevista com este acérrimo defensor da cozinha portuguesa, católico e monárquico, deteve‑se numa vida ligada a hotelaria e ao futebol, no FC Porto e na seleção nacional e, mais recentemente, na opção de se dedicar a consultoria, nomeadamente na empresa Só Catering.

Veja aqui um resumo da entrevista, ou leia a conversa reproduzida na íntegra abaixo. 

Pedia‑lhe que fizesse o exercício de memória de recuar ate ao momento mais antigo em que percebe a paixão pela cozinha e pela comida.

A paixão pela cozinha começa muito novo. A minha primeira memória da cozinha vem por volta dos seis, sete anos. Em minha casa sempre se conviveu muito, sempre houve a vontade de estar a volta da mesa, e a vontade de ir para a cozinha e de experimentar fazer alguma coisa sempre existiu. Lembro-me de que a primeira receita que fiz era da Crónica Feminina, eram umas empadas de maca, que ficaram tal e qual como na receita. Lembro‑me que depois em 1976 saiu a revista TeleCulinária e o meu pai comprava e trazia para casa. Eu fazia as receitas de fio a pavio. Mais tarde vim a ser grande amigo do Chef Silva, que foi o meu primeiro mestre. Aí já cozinhava, já tinha 13 anos. São essas as primeiras memórias que tenho da cozinha. E depois do tempo em que estava em casa dos meus tios, em Bragança, e da cozinha da minha tia Ludovina. Tenho memórias dessa comida transmontana, com muitos afetos, mas também com muito sabor.

Lembra‑se de ter experimentado alguma resistência pelo facto de um rapaz gostar e querer ir para a cozinha?

Havia um preconceito e uma resistência familiar muito grande. A minha mãe, com 90 anos, com a sua demência, ainda este Natal disse que é uma vergonha eu ter ido para cozinheiro. Havia a ideia de que um filho tinha de ter uma formação académica, que não se vencia na vida a volta dos tachos. A grande ajuda que tive foi do professor Daniel Serrão, porque o filho dele também foi para o curso de cozinha e ele incentivou muito a minha mãe para que me deixasse ir, porque naquela altura, há 30 e poucos anos, ir para cozinheiro não era propriamente o sonho de qualquer mãe. Hoje, sim!

Era quase um ato de rebeldia?

Era um ato de rebeldia porque não se ganhava muito, era uma profissão desprestigiante. O cozinheiro era um barrigudo, de bigode, seboso e alcoólico, com pouca formação. Era assim que era vista a profissão, não tinha estatuto. Hoje é vista com outros olhos.

Quase com o glamour de estrelas de rock…

Infelizmente depois enveredou por ai, para um aspeto de que hoje não gosto tanto, que é um bocadinho aquele do showbiz, da pop star, em que estamos.

E como e que a cozinha se tornou uma profissão? Como é que se preparou?

Fiz, na altura, a Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, que tinha uma grande ligação a Escola de Lausanne, na Suíça. A escola funcionava onde hoje é o Palace do Vidago, era um curso de dois anos, com estagio de dois meses, e foi ai que fiz a minha preparação. Depois estagiei em Paris, no Luxemburgo, em Bruxelas, fui para o hotel Quinta do Lago, estive no Zé da Calçada, em Amarante, depois na abertura do hotel Meridien, voltei ao hotel Quinta do Lago, vim para o hotel Sheraton do Porto, depois para o hotel Porto Palácio, de onde saí há cinco anos, e enveredei pela parte de consultoria. Os hotéis mudaram muito. Hoje estou afastado dos hotéis e da restauração e estou mais como consultor.

Olhando para esses tempos do antigo Sheraton, o que de mais profundo mudou na cozinha em Portugal?

Mudou muita coisa. Houve uma altura em que era preciso definir de que é que estávamos a falar. Havia uma cozinha de base francesa e, porque não tínhamos gosto e apreço por aquilo que era português, foi preciso fazer um trabalho de ‘sapa’ muito importante, que uma geração como a minha fez, e que foi o de valorizar aquilo que era nacional. Depois houve uma geração que veio a seguir que se deslumbrou com o que era asiático, da América do Sul, e hoje vejo o retorno a terra com uma geração com vinte e poucos anos. Este retorno é muito importante por várias razoes. Primeiro por uma questão ambiental. Quando falamos em cozinha temos de atentar em três pontos que são importantíssimos. O primeiro deles é a biodiversidade, os outros são a sazonalidade e a proximidade. E não podemos esquecer que, enquanto país que criou a globalização, nós trouxemos produtos, levamos produtos, mas eles foram integrados na nossa alimentação. Ou seja, trouxemos o tomate, os pimentos, o feijão, mas plantamo‑los cá. Não continuamos a ser importadores deles. Hoje o que acontece é que somos importadores de abacate, de chia, de gogi, de quinoa, em grande escala. Há que voltar um bocadinho ao passado, voltar a nossa cultura e tradição. Quando se fala em tradição as pessoas tem sempre ideia de que sou retrógrado, ou conservador. Tradição quer dizer semanticamente transmissão, transmitir as coisas que são boas. E por isso temos que fazer esta avaliação, se vale a pena continuarmos com este novo‑riquismo que é termos uma cozinha baseada nesta cozinha oriental, os sushi, sashimi, que também aprendi a fazer há 30 anos, mas que achei que não era por aí que devíamos ir. Devíamos aproveitar aquilo que temos da nossa cozinha regional portuguesa, recupera‑la e fazer dela bandeira.

Ve sinais positivos de uma mudanca de atitude?

Vai haver mudanças e umas vão ser quase impostas. Acho que temos essa oportunidade de fazermos a nossa cozinha de uma forma diferente. Choca‑me muito quando olho para algumas ementas, sejam de chefs portugueses ou de estrangeiros, e são precisas legendas para sabermos o que queremos comer. Havia um chef há pouco tempo que dizia que esta cozinha moderna, esta cozinha de luxo, não existiria se não fossem os estagiários, se não fosse uma mão-de-obra grátis, escrava, que não devia existir. Isto não pode continuar. A restauração tem que ser um valor acrescido, mas nunca pela desvalorização do trabalho, nem nunca pela exploração do trabalho.

Algumas cozinhas, a espanhola, a italiana, a japonesa, conseguiram fazer um percurso de afirmação internacional. Não lhe parece um bocadinho estranho que a gastronomia portuguesa não tenha feito esse caminho?

Quando a cozinha portuguesa estava a fazer esse caminho, ele é interrompido com a entrada dessa aproximação a um mundo que não é o nosso. Esta importação daquilo que é da América do Sul, do Norte, do Oriente, esta vontade de querer fundir, mas que confunde aquilo que é nosso, não nos permite manter uma linha sempre correta, ou contínua, de originalidade. Ao passo que os italianos sempre souberam muito bem o que é a cozinha italiana. Mesmo os restaurantes de alta cozinha italiana nunca misturaram, nem quiseram, outras cozinhas, de fusão. Nos fizemos cozinha de fusão com cozinha tradicional portuguesa, o que deu sempre uma grande confusão, e nunca permitiu uma afirmação completa daquilo que é a cozinha tradicional portuguesa.

Gostar de pessoas é importante para cozinhar bem?

É o mais importante, gostar de pessoas. O facto é que nós nunca nos lembramos de uma refeição em que comemos sozinhos. As minhas memórias de comer são sempre com alguém. Começamos a frase “Eu estava com... e comi um belíssimo cozido a portuguesa”. Eu sei que a frase está muito repetida, mas quando a disse sei que foi original, porque li o livro todo do Mia Couto. O Mia Couto dizia que cozinhar não é um serviço, é uma forma diferente de amar. Quando uma mãe ou pai de família, ou alguém, se levanta às oito horas da manha de um domingo para cozinhar para a família, para almoçar à uma da tarde, é um ato de amor. É preciso gostar das pessoas para quem se vai fazer a refeição. É essa dose de amor e afeto que nós colocamos na comida. Temos de gostar das pessoas para quem estamos a cozinhar. Depois há a parte profissional.

Há um outro elemento que é relevante na sua vida, que é a música. Como é que a música e a cozinha se misturam? Gosta de ouvir música quando cozinha?

Há pessoas que gostam de estar a cozinhar e a beber um copo de vinho. Eu não suporto a ideia. Um amigo meu dizia: ‘Fui a um jantar e estavam mulheres lindíssimas, a comida era fantástica, a música era fabulosa, mas as três coisas não se misturam’. Eu também acho que há coisas que não se misturam. Não sou assim tão extremista quanto ele, mas a verdade é que não consigo estar a cozinhar, a beber um copo de vinho e a ouvir boa música. Não consigo estar a ler e a ouvir música. Não consigo estar a cozinhar e a ouvir musica, são dois mundos diferentes. A música faz parte da minha vida desde muito novo, cantei ópera no Círculo Portuense de Ópera, fiz parte de vários coros, tive o grande gosto de ser ensaiado pelo cónego Ferreira dos Santos, por Manuel Ivo Cruz, que me ensinaram imensas coisas, não só a parte musical, mas sobretudo a ser homem, a ser aquilo que hoje sou. Onde suporto a música a fazer outras coisas e quando vou a viajar sozinho, quando vou acompanhado não consigo. Prefiro conversar ou manter o silêncio. O silêncio também é uma forma fantástica de meditação.

Há limites para a criatividade e para a experimentação na cozinha, ou corremos o risco de estar a fazer malabarismos, perdendo algo de essencial nesse exercício?

Acho que não há limites para a experimentação. Gosto muito pouco de ir a restaurantes que me perguntam se gostei da experiência. Não vou a um restaurante para ir a um laboratório, vou para comer, para estar com as pessoas, para degustar, para ter esse prazer da comida. Acredito que haja pessoas que gostam dessa experiência, não tenho um especial interesse ou gosto por umas amostras de comida que depois não posso repetir. Acho que há espaço para tudo, mas não sou muito dessa onda, prefiro ter uma refeição mais quente, mais saborosa, mais equilibrada, mais contida.

Na cozinha, qual e a percentagem da técnica, e do génio, criatividade, imaginação?

É uma pergunta muito interessante, porque às vezes as pessoas dizem: cozinhar é uma arte. A cozinha pode ser uma arte, mas uma cozinha é uma técnica. Eu não faço arte, faço cozinha, e exploro algumas técnicas, outros farão arte, com certeza. Temos que nos interrogar sempre sobre o que é a arte. Posso ficar muito sentido, e muito comovido, com um bom prato de tripas a moda do Porto, que tem técnica, mas será que tem arte?

Onde procura inspiração? Nas viagens que faz, nos livros, com outras pessoas?

Nas memórias, no contacto com as pessoas, mas acho que quem vive agarrado ao passado não vive o presente. Isso também não faz sentido nenhum. Eu vivo o presente. O que eu não quero é deixar morrer aquilo que veio do passado. Faz sentido preservar as coisas boas que nos foram legadas. Quando faço uma viagem, recordo‑me das viagens que fiz no passado, mas vivo a viagem do presente, que me vai trazer memórias para fazer outras coisas dali a uns dias, seja um prato, um banquete, uma decoração, ou seja o que for. Não fico agarrado nunca ao passado. As pessoas que ficam agarradas ao passado são melancólicas, tristes, saudosistas e eu não tenho essas características.

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O futebol e a mudança na alimentação

Há uma parte do seu percurso que e sobejamente conhecido que é o da sua ligação ao futebol. Como foi essa experiência?

Foram 20 anos muito interessantes, em que senti que prestei um serviço muito interessante não só a Seleção, mas também ao conhecimento de uma área que era de todo desconhecida, que era a da alimentação em alta competição. Comecei a trabalhar com o Futebol Clube do Porto em 88/89 e havia muito pouca coisa sobre alimentacao no desporto. Tenho a certeza de que fui um dos pioneiros nessa área, e que fiz um grande trabalho ‑ que hoje pode ser ou não reconhecido, pouco me importa ‑, mas o que importa e que a partir daí começou a estudar‑se. Há 20 anos um jogador de futebol, antes de ir para o campo, comia um bife do lombo em sangue, porque achava que aquilo lhe dava mais energia, e que aquilo é que era saudável. Havia pequenas coisas que mesmo os médicos da Seleção desconheciam por completo porque eram ortopedistas, de clínica geral, e não tinham estes conhecimentos. Trabalhei muito com nutricionistas, com pessoas como o professor Emídio Peres, que me ajudou imenso nessa área, o Dr. Basílio, o Dr. Domingos Gomes, que fundaram as bases da alimentação dos atletas de alta competição.

Mas já tinha interesse por essa área?

Não, tudo surgiu do convite do Futebol Clube do Porto, e mais tarde da Seleção, e fui à procura, sobretudo no basquetebol americano onde já havia algum conhecimento nessa área de nutrição. Foi muito interessante e abriu horizontes. O FCP foi pioneiro nisso e depois a Seleção Portuguesa de Futebol seguiu‑lhe o exemplo. Hoje já nenhuma equipa prescinde de ter um cozinheiro, porque é de facto importante ter alguém que acompanhe as refeições dos jogadores.

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Catering nos eventos: quente, fresco e saudavel

E passando para a área dos eventos, quais são os principais desafios quando é preciso providenciar um catering para um evento?

O primeiro é a segurança alimentar. Ter a certeza de que quando aquilo acaba as pessoas vão estar de boa saúde. Isto é essencial. E depois ter uma comida que não seja plastificada, que seja uma comida saborosa e que permita que, no final da refeição, as pessoas se lembrem de que tiveram uma boa refeição.

Mesmo quando é preciso servir mil pessoas?

Duas, três, quatro mil... É evidente que as pessoas tem que ter consciência de que é diferente servir duas, três mil pessoas ou servir dez. Nunca vai ser a mesma refeição. Mas o que se serve tem de se servir quente, tem de ser fresco e tem que ser saudável.

Em termos de regras de segurança e de higiene alimentar, acha que em Portugal as boas práticas estão suficientemente bem implantadas?

Acho que fomos os melhores alunos da Europa. Conseguimos passar de mas práticas a umas belíssimas praticas. Quando aparece a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), as pessoas acharam que era uma revolução, que nada ia resistir, que os restaurantes iam todos fechar, que ia ser um desastre. Mas o que é verdade é que hoje ter açucareiros nas mesas, como existe por exemplo em Itália e França, servir o pão aos clientes com as mãos e dar os trocos logo a seguir, fumar em restaurantes e cafés, o óleo que só ao fim de uma semana e que se deitava fora, já ninguém voltava a querer isso. Hoje faz‑se a triagem de lixo nas cozinhas, separa‑se o plástico do lixo orgânico em quase todos os restaurantes, do mais simples ao mais luxuoso. As pessoas nem imaginam o quanto mudou e é impossível voltar atrás.

Quando estamos a falar de catering para eventos sente‑se muito a limitação que é imposta pela questão do preço, pelo cliente que quer sempre cortar um bocadinho mais?

O preço é sempre um constrangimento, seja no que for. O grande problema no catering é que a expectativa de quem vai ser servido e de quem contratou o serviço são coisas diferentes. Posso ir a um evento de uma grande marca e chego lá e estou a espera de um grande banquete, só que a grande marca contratou o serviço de 20 euros. Quem está no evento não vai culpar a marca, vai culpar o catering. O catering não tem culpa nenhuma, a marca não contratou champanhe, contratou espumante, e se calhar do mais barato que havia. Às vezes as pessoas confundem isso. E hoje há uma outra coisa que acontece imenso que é a tendência cada vez maior para termos vegetarianos, vegans, intolerantes a lactose, ao glúten; depois há os intolerantes e os que não podem mesmo comer; há os que avisam e os que não avisam com antecedência. E uma lista interminável, que obriga a ter uma pessoa escalonada só para este serviço. E quando o prato chega a mesa, alguém olha para o lado e vê outra pessoa a comer vegetariano, e naquele momento não lhe apetece comer carne, diz que também é vegetariana. Isto implica um constrangimento enorme no serviço. Que remete para outra coisa, que é a educação. Se for comer a sua casa e me der uma sopa de nabo – eu que detesto nabos ‑, como e no final agradeço. As pessoas não entendem que a educação é uma parte importante da nossa sociedade. Ser convidado para um banquete e o mesmo que ser convidado para casa de uma pessoa. De repente, está‑se num banquete e quer‑se mudar de vinho, só porque não se gosta do vinho que o cliente, que a pessoa que contratou o serviço, aprovou… só porque sim.

Pensando nas centenas ou milhares de eventos que ja forneceu em termos de catering, recorda‑se de um ou outro mais desafiante?

Houve um que me marcou imenso e que foi o da abertura da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, não só pelo que representou para a cidade, mas porque contou com a presença da Rainha Beatriz da Holanda e de pessoas dos vários cantos do mundo. O evento foi na Alfândega do Porto e foi lindíssimo. Tive um desafio muito grande que foi servir um vinho tinto com peixe. Peixe porque era a imposição que havia, porque estávamos em Portugal, e eu achei muitíssimo bem, e tinha que haver ali uma conjugação, uma ponte entre o peixe e o vinho. Servi então um rodovalho, que é um peixe mais gordo, com uma compota de cebola feita com um vinho da mesma casta do vinho tinto, com foie‑gras, e aquilo resultou muito bem. Tao bem que, passados dois anos, o ajudante de campo do Grão Duque do Luxemburgo ainda se lembrava do menu. E isso deixou‑me espantado. Depois a cimeira Ibero‑Americana, em que estiveram 23 chefes de Estado. Servi‑os duas vezes e isso também foi marcante. Depois, claro, como monárquico servir o jantar de apresentação dos Príncipes das Beiras, na Casa do Senhor Dom Duarte, em Nelas; e o batizado do Príncipe D. Dinis aqui no Porto, mas isso mais pelo simbolismo, não pela grandiosidade. Há eventos em que me orgulho imenso de ter estado presente.

Olhando para o mercado como um todo, que impressão tem da qualidade do catering que é servido em Portugal?

Comparado com aquilo que se serve lá fora, temos uma boa relação qualidade‑preco e estamos um bocadinho acima da media em termos de comida. Muitas vezes o que nos falta e o show off, a parte da apresentação, do glamour, de tudo aquilo que é a mise‑en‑scene dos eventos. Lembro‑me de ter estado numa empresa em Paris, não vai há muito tempo, que tem dez eventos por dia, que fatura 250 milhões. E essa tem pratos e copos de todas as formas e feitios, estão sempre a criar e a inventar, tem um batalhão de empregados, e hoje arranjar empregados de mesa e das coisas mais difíceis que pode imaginar. E um problema gravíssimo que estamos a atravessar na hotelaria e na restauração, e que e a dificuldade na contratação de empregados, de mão‑de‑obra, e isso limita imenso. Aquilo que nós faziamos antes, que era ter dois empregados para uma mesa de dez, hoje é impossível porque os empregados não existem. A qualidade de serviço diminuiu bastante em relação ao que era há 20 anos.

Até que ponto é possível ser criativo em catering para eventos?

A criatividade em catering depende sempre da correspondência monetária. Só tive uma vez um cliente que me disse que o orçamento não era um obstáculo e então aí não houve limite à criatividade. Foi um dos melhores serviços que já fiz em toda a minha vida, uma coisa fantástica, desde os cortinados de seda selvagem, até aos talheres de prata. Quando não há limites, não há limites para o vinho, para o que se serve, para os empregados.

E em termos de tendências? É capaz de identificar uma ou outra nesta área?

Há 30 anos usavam‑se mesas de espelho, os dourados, grandes arranjos de flores, muitas pratas; depois veio uma coisa mais simples, as mesas com os atoalhados, os adamascados; depois vieram as mesas com cor, depois as mesas de vidro, com luzes; hoje usa‑se muito estas mesas de madeira, o rústico, o vintage. A próxima tendência não sei qual será, mas acho que a tendência será sempre para simplificar.

Com o aumento do turismo em Lisboa, no Porto, noutros pontos do pais, que principais impactos positivos ou negativos isto tem ao nível da nossa gastronomia?

Trouxe benefícios enormes para a cidade do Porto. Quem viu a cidade há 20 anos, como ela estava antes, tínhamos medo de andar na rua, parecia uma cidade de zombies, os prédios estavam todos degradados, havia meia dúzia de restaurantes. Em Lisboa era igual. Hoje a cidade tem vida. O professor Hélder Pacheco diz que há pouco Porto no Porto. E eu entendo quando ele diz isso. Mas prefiro assim, do que ter o Porto de há 20 anos. Nem tem comparação. Esta reorganização da cidade é muito mais interessante do que aquela que nos tínhamos. O crescimento da cidade quando se torna turística é sempre doloroso. Quando vamos a Roma ou Paris ou Barcelona há filas para tudo. Mas isso é o normal das cidades que são bonitas e que têm história. Trouxe coisas muito boas, belíssimos restaurantes e espaços que antes não tínhamos. O que traz de mau é um abuso grande das pessoas que estão a trabalhar. Não é admissível que os hotéis cobrem o que estão a cobrar e os empregados continuem a ganhar o que estavam a ganhar há 20 anos. Eu não pactuo com isso. Se o turismo veio para ficar, a sociedade tem que também crescer e tornar‑se mais razoável e mais valorizada para todos. Da mesma forma que, quando penso num banquete, penso nas pessoas, quando penso na sociedade, nos restaurantes, nos hotéis, nas ruas e cidades, primeiro devem estar sempre as pessoas.

Regressando a si, qual e o segredo para se manter tantos anos no topo de uma profissão?

Acho que não há segredo nenhum. Uma pessoa que é coerente naquilo que diz e faz, e e fiel aquilo em que acredita, mantém‑se na mesma linha. Acho que nunca estive no topo de nada, nem em baixo de nada, fui sempre coerente. Vou fazendo o meu trabalho. Tinha 16 anos quando adotei um lema de vida num retiro que fiz: quem não vive para servir, não serve para viver. Todos os dias me lembro disto quando me levanto. Eu estou sempre ao serviço. E isso é estar ao serviço de tudo e de todos, seja na cozinha, na vida social, seja na família, e este estar ao serviço é que me mantém vivo e atento as coisas.