Gonçalo Castel‑Branco: “Sempre me atirei para fora de pé”

15-11-2018

Uma conversa que durou uma hora e meia, mas que podia muito bem ter durado uma tarde inteira. Gonçalo Castel‑Branco é um criativo, que não apenas dos eventos, e um conversador nato.

Sem medo de arriscar, de se lançar a fazer coisas, é o mentor do projecto The Presidential Train, ou Comboio Presidencial, ideia da filha mais velha, e que lhe valeu o prémio de Melhor Evento Público do mundo, nos Bea World. Pelo meio, tem uma carreira recheada de eventos marcantes, que quisemos conhecer.

Quando era miúdo o que é que queria ser?

Acho que a primeira coisa que me lembro era de querer ser realizador. Fui expulso de todas as escolas onde andei. Era péssimo. À quarta ou quinta seguida, a minha mãe desistiu, já estávamos a meio do ano, e arranjou‑me um emprego como inspector publicitário, em que basicamente tinha de ir para os cinemas, e ver se os anúncios davam na hora certa. Para mim era um emprego óptimo, porque passava o dia inteiro sozinho a ver filmes. Comecei a querer ser algumas coisas, nomeadamente realizador. Hoje em dia realizo algumas coisas, muito poucas, mais amadoras, mas fiquei com uma vontade e uma noção de narrativa, de storytelling, que trago para todas as outras coisas que faço.

Porque é que não teve sucesso na escola? O tipo de ensino era demasiado formatado? Preferia algo mais ligado às artes, à criatividade?

Nunca me encaixei muito bem no formato. Não me dou bem com aquela estrutura de 20 a 30 pessoas estarem sentadas a fazer uma coisa predefinida. Sempre fui mais de exercício criativo, e de construção livre. Portanto não tinha prazer naquilo, e porque não tinha prazer não fazia bem. Nunca tive boas notas, nunca fui bom aluno. Hoje em dia quando dou aulas são quase sempre desformatadas, conversas abertas e num formato mais americano.

Qual foi a influência da sua mãe [Luisa Castel‑Branco] na escolha de carreira? De seguir a área da comunicação…

Muita. Ela sempre foi a única pessoa que tinha uma noção daquilo que eu podia ser. Era objectivamente um miúdo difícil, um aluno difícil. A minha mãe era a única que não achava que eu era difícil, só não tinha encontrado aquilo que queria fazer. Ela acabou por acreditar em mim, em alturas em que mais ninguém acreditava. Se tivesse uma mãe com menos visão, teria provavelmente seguido direcções diferentes. Por outro lado, ela trabalhava em comunicação e em política, que foram as duas coisas em que eu acabei a trabalhar até hoje. Nós trabalhávamos todos nas coisas da minha mãe. Os projectos da minha mãe eram um bocadinho como são os meus projectos hoje em dia: projectos da família toda.

Que outras pessoas influenciaram a carreira?

Acho que várias. Nunca segui ninguém do ponto de vista aspiracional, mas sempre fui muito mais influenciado por pessoas‑chave ao longo da minha carreira. Na altura em que se organizou o logótipo humano para o Euro, vi aquilo na televisão e disse: quero estagiar naquela empresa. Era uma empresa de marketing desportivo. Na altura consegui uma entrevista, consegui entrar, e passei de estagiário a responsável de departamento em seis meses. E lembro‑me que essa primeira pessoa com quem trabalhei influenciou‑me imenso, por todas as razões, as óptimas e as péssimas. Era uma mulher fenomenal, chamava‑se Ana Matias. Hoje em dia já não está na área. Era uma mulher genial. Se os eventos eram um mundo de homens, hoje em dia menos, o marketing desportivo ainda mais. Ela era uma mulher com força, fibra intelectual, criatividade. Ela propunha coisas que ainda hoje em dia seriam consideradas revolucionárias. Mas tratava toda a gente de uma maneira que aprendi que era aquilo que eu não queria fazer. As pessoas tinham medo dela em vez de quererem segui‑la. Mas eu, que sempre vivi rodeado de mulheres fortes, continuo a ter um talento para estar bem à beira de mulheres fortes, que ninguém consegue aturar. Depois a seguir trabalhei com o Eduardo Guerra, numa empresa pequena. Também era um tipo formidável, completamente diferente, mais magnético e carismático…

Ainda na área do marketing desportivo?

Quando saí da empresa de marketing desportivo, passado uma semana tocou o meu telefone, e era o Eduardo Guerra, que era uma pessoa que conhecia há muitos anos. Ele tinha uma empresa muito pequenina e queria que eu fosse para lá como director criativo. E fui. No primeiro dia, ele diz‑me que no dia a seguir tínhamos uma reunião com uma marca nova que ia ser lançada, que era a Yorn, e que queria levar uma ideia. Na minha carreira sempre me atirei para fora de pé. Quando aceitei este trabalho como director criativo, nunca na vida tinha tido que olhar para um papel em branco, e ter a necessidade de ter uma ideia. Lembro‑me de me sentir aterrorizado. Na altura criei uma coisa que era a Yorn School Experience, que era o dia de aulas perfeito. Era um roadshow de escolas, em que os miúdos quando chegavam à escola, em vez de terem matemática ou português, tinham aulas de grafitti, DJ. Então no dia a seguir chegamos lá, e ele sentou‑me em frente a uma pessoa, que era um dos responsáveis da marca, o Tiago Canas Mendes.

Com quem depois trabalhou mais tarde…

Exactamente. Apresento aquilo ao Tiago, e ele muito silencioso, chega ao fim e diz: “importas‑te de repetir a apresentação?” Ele volta com o director de marketing da Yorn, que era o António Fuzeta da Ponte, com quem trabalhei também mais tarde. Voltei a fazer a apresentação, e aquilo na altura foi aprovado e começámos a trabalhar muito com a Yorn. No dia que saí desta empresa, o Tiago convidou‑me para ir para a Yorn. Fizemos coisas fenomenais na Yorn. Uns anos depois, quando descobri que ia ser pai da Inês, fui ter com o Tiago e disse‑lhe que ia ser pai, e que o ritmo de trabalho não podia continuar assim, e que queria sair da empresa. Estava aterrorizado de como ele ia reagir, mas ele respondeu: “eu vou contigo, vamos abrir uma coisa nossa”. E então abrimos a Action 4, na altura já na ativism. O Tiago é um óptimo gestor de pessoas, um tipo que tem uma qualidade que não encontrei nunca mais na vida, é profundamente magnético, no sentido de atrair talento. Ele naturalmente consegue que gente talentosa se sinta atraída pelo magnetismo dele e queira trabalhar com ele e à volta dele. O talento dele é esse: ser um farol para gente com talento.

Mais alguém que queira destacar?

O Pedro Rodrigues [Desafio Global], sem dúvida. É uma pessoa que está no meu speed dial quando tenho uma pergunta. E tenho várias vezes. É para mim, de forma destacadíssima, o líder, sem comparação, da área dele. Eventos corporativos não há literalmente ninguém que eu conheça, em Portugal, e mesmo fora de Portugal, com a experiência e o bom senso que ele tem. É exactamente o oposto do que eu sou a trabalhar. É um tipo formidavelmente organizado, não muito propenso a riscos, que gosta de fazer coisas com os pés assentes no chão, mas é um tipo encantador, com quem toda a gente gosta de trabalhar e que sempre me tratou, desde o início da minha carreira, até hoje, da mesma maneira, sempre me fez sentir muito acarinhado profissionalmente. É muito fácil valorizar as pessoas que estão ao nosso lado, que são boas, que têm talento, com quem nós já trabalhamos, mas pessoas novas, é muito fácil descartar. E é preciso um esforço consciente para acarinhar essas pessoas, para ser generoso com o nosso tempo, generoso com a nossa opinião. É um esforço consciente que muita gente não faz, e o Pedro fez comigo desde o início e faz ainda hoje. É uma pessoa que admiro imenso e cuja opinião peço regularmente.

Influenciou o seu estilo de liderança?

Acho que tenho um formato de interacção e de liderança muito próprio. Tento criar um contexto à minha volta, no qual a minha equipa se sente, simultaneamente, fora de pé, constantemente, e constantemente protegida. É um equilíbrio também difícil. Posso a qualquer momento dizer: tive aqui uma ideia, pode ser qualquer coisa, que a equipa sabe que vou esperar que eles consigam entregar coisas, que eles até há 10 minutos nem sabiam como se fazia e se calhar em Portugal nunca ninguém fez. Eles sabem que há essa pressão enorme de andar constantemente fora de pé.

É ainda mais importante então escolher as pessoas certas para cada projecto?

Isso também. Preciso que eles sintam que são capazes, mas que sintam que no dia em que não foram capazes, a responsabilidade é minha, em nome deles. Acho que esse estilo de gestão vem de experiência de vida, de tentativa‑erro, de entender que a melhor maneira de tirar o melhor das pessoas é que elas sintam que estão num sítio em que tudo é possível, mas que no dia em que alguma coisa corra mal, ‑ e quando se está a inovar há sempre alguma coisa que corre mal ‑, a culpa nunca é deles, a culpa é sempre nossa. E a única coisa com que eles têm de se preocupar é de me desiludir a mim, e nunca de serem responsáveis perante o projecto. Não são, sou sempre eu.

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Yes, he can

Tinha uma vida bastante estável, e de repente decidiu ir para os Estados Unidos trabalhar na campanha do Obama. O que é que o levou a tomar esta decisão?

Sempre fui apaixonado por política americana e um romântico em relação à política americana. O que nós fazemos é muitas vezes dividido em pequenas parcelas: comunicação, marketing, publicidade, estratégia, eventos, e é uma divisão absolutamente falsa. Nós fazemos uma coisa única que é: somos contadores de histórias, a narrativa é o único instrumento para passarmos sentimentos uns aos outros. Como a contamos, ou a escala com que a contamos, são tudo coisas mais facéis de arrumar. Agora no fim do dia as regras são absolutamente as mesmas. Quero contar‑te uma história, quero que te revejas naquilo que estou a dizer, e que de repente sintas uma empatia na minha história, e que revejas a tua na minha. E no fim que compres o iogurte que estou a vender. Sempre achei a política, quando bem feita, das formas mais nobres de storytelling que existe. Porque estou a contar‑te uma história, preciso que te revejas na minha história, não para comprares um iogurte, mas se conseguir que tu votes em mim, ou no tipo com quem estou a trabalhar, a tua vida vai ser melhor, a vida dos teus filhos vai ser melhor. É exactamente o mesmo caminho, só que no fim do dia o meu objectivo é que todos nós tenhamos uma sociedade melhor. E não há exercício mais nobre do que este, quando é bem feito. Sempre achei que nos Estados Unidos eram bem feitos, e sempre cresci com exemplos de gente que lutava por isso: Martin Luther King, os Kennedy, o Obama. Portanto achei que era muito importante participar em coisas deste género.

Essa decisão de largar tudo, já tinha uma filha…

Queria ter ido em 2008, mas a minha filha era muito pequenina. E então programei tudo para, finalmente, em 2012, ir. Na altura já era responsável da comunicação digital do governo e já estava na ativism, era director criativo. Reservei três meses e fui. Na altura ia completamente convencido de que ia servir cafés, e ia encantado, e em 48 horas aconteceu um conjunto de coisas.

Soube logo para que Estado ia?

Na altura fui para a Carolina do Norte, para a Convenção, e a minha ideia era depois ir para Chicago, para a sede da campanha. Mas acabei por ser desviado para Washington e ficar a trabalhar em Virginia. Conheci uma pessoa que meteu conversa comigo, de repente, em 48 horas, tinha trabalho na campanha, tinha casa na rua da Casa Branca, estava a jantar com o Mayor de Washington no dia a seguir. Começaram a aparecer uma série de coisas que só acontecem nos Estados Unidos. Fiquei com uma rede de contactos que até hoje mantenho. E entretanto já trabalhei nos Estados Unidos em mais duas campanhas. No total trabalhei em quase 15 campanhas, nos EUA, Brasil e Portugal.

E também esteve envolvido na campanha da Hillary Clinton…

Na campanha da Hillary estive a treinar e a gerir voluntários, que iam desde 20 e no final da campanha 60 e tal por dia. Treinava‑os no porta‑a‑porta, a fazer telefonemas, a convencer os eleitores a votarem na pessoa que queríamos. É um conjunto de técnicas muito específicas, que aprendi e conheço.

Foi uma grande desilusão a derrota dela?

Foi uma grande desilusão no dia. Para já foi a única eleição que perdi, não tinha muita experiência nesse exercício. Uma campanha tem uma coisa muito perversa e ao mesmo tempo muito natural, é o único exercício de comunicação e de marketing em que 50% das pessoas que estão a trabalhar vão sair profundamente desiludidas no fim do dia. Por outro lado foi das campanhas mais importantes em que participei, no sentido em que havia em todos nós uma noção de que estávamos a salvar o mundo. Foi uma tristeza enorme, e depois foi uma desilusão porque os números não batiam certo e isso foi difícil de arrumar. Vê‑se ao longo da noite que os números não batem certo, que os números com que estávamos a contar não estavam a sair. Acho que hoje em dia já se pode dizer que estamos muito próximos de provar o que aconteceu e que, de facto, ele [Trump] não ganhou, ele roubou uma eleição, através de meios que são ilegais, pelos quais ele não irá preso, mas seguramente irá ser demitido. Obviamente aquilo não foi uma eleição legítima, e nesse sentido foi uma desilusão. Mas a vantagem de só fazer campanhas para pessoas em que acredito, é que normalmente estou do lado certo da história, e portanto perder uma campanha com alguém em quem acreditas é sempre melhor do que ganhar com alguém com quem tu não estás nem aí. Tenho muito orgulho de ter trabalhado nessa campanha mesmo que a Hillary não tenha sido eleita. Sei que estava do lado certo da história e que estava a tentar fazer um mundo melhor para as minhas filhas. Quando tens marcas isso não acontece, não há marca certa e marca errada. São as duas marcas.

Quais foram as principais lições que trouxe da experiência americana?

Que é muito importante, seja o que for que fazes na vida, acreditares no que estás a fazer. Se puderes escolher mais vale escolheres uma coisa com a qual vais dormir bem de noite. E que por outro lado, Portugal tem muito a aprender na comunicação não‑comercial, seja política, sejam organizações não‑lucrativas, o próprio governo. Tudo o que sejam coisas que não são comerciais, temos muito a aprender com as virtudes de profissionalizar esse trabalho em primeiro lugar, e por outro lado, a necessidade de injectar nos nossos cidadãos, nas pessoas à nossa volta e nos nossos filhos, uma noção cívica e de associativismo, da importância de se envolverem com coisas maiores do que eles mesmos.

Sente que Portugal é pequeno para si?

Sinto que tem o tamanho ideal. Os meus amigos americanos que acompanham a minha carreira acham que sou doido ou que estou a mentir. Estava em Washington, na campanha do Obama, era responsável pela comunicação digital do governo em Portugal, falava com o primeiro‑ministro directamente e regularmente, dois meses depois quando foram ao meu Facebook tinha inventado um comboio de luxo, que entretanto ganhou o prémio de melhor evento público do mundo; três meses depois estava a fazer a adaptação do Avenue Q em Portugal. Costumo dizer que Portugal é um lago pequeno, mas tem a vantagem de que é mais fácil seres um grande peixe. Nos Estados Unidos sou um peixinho pequenino. Em Portugal uma pessoa que seja séria, tenha talento e trate bem os outros, à partida chega ao nível mais alto do seu mercado, relativamente rápido. À partida consegue ter uma vida confortável, a fazer coisas boas. Não conheço mais nenhum país em que consiga inventar um comboio, sem nunca ter feito um, e seis meses depois ele estar na linha.

O The Presidential é o projecto mais marcante da sua carreira até agora?

Acho que é um dos mais marcantes. Quero acreditar que não é o mais marcante, porque a minha carreira vai nem a meio. Adorei fazer Os Produtores e foi o único projecto da minha vida em que perdi muito dinheiro. O único que foi objectivamente um fracasso e eu adorei fazer. Era uma coisa que me enchia as medidas. Adorei fazer o Avenida Q e transformar um musical de marretas, que em teoria era impossível de fazer. Estava há nove anos a pensar como é que o havia de fazer. E transformá‑lo num sucesso de bilheteira com 97% de taxa de ocupação, 75 mil pessoas a verem e um case study de interacção com marcas no teatro, que não existia em Portugal, e que foi inventado literalmente quando estava a tomar duche. Ao fim de quatro dias sem conseguir encontrar uma maneira de pôr uma marca em teatro, a meio do duche comecei a gritar. Acho que todas estas coisas me enchem as medidas da mesma maneira. A Hillary e o Obama foram incríveis, as presidenciais no Brasil em que o meu candidato morreu a meio num desastre de avião, foram incríveis. Já fiz tanta coisa boa, que é muito difícil dizer qual é a mais marcante. Há uma razão para por o Presidencial num lugar diferente dos outros, é porque foi uma ideia da minha filha. Não há projecto mais bonito, no sentido familiar, e por esse aspecto ele é muito especial.

Já partilhou connosco como surgiu a ideia do The Presidential. Nos outros projectos, qual é o seu processo criativo?

Hoje em dia faço poucos projectos. Basicamente tive uma epifania há uns anos. Percebi que nós, as pessoas que fazemos criatividade, para a área dos eventos neste caso, somos o nosso principal inimigo. Nós tornamos perecível uma coisa que não é. Um exemplo: o director de marketing da CP entra em contacto comigo e o que é que acontece naturalmente no mercado? Para já entra em contacto comigo e com mais três ou quatro em concurso. Mas vamos saltar essa parte à frente. Dá‑me um briefing para uma acção, um orçamento e diz que o que quer é que as pessoas saibam que existe o Museu Nacional Ferroviário. Eu ia para casa ter uma ideia: um comboio com chefs Michelin. Apresentava a ideia, a CP dizia vamos avançar. E avançávamos. Isto é o normal de um evento. O evento chega ao fim. É um sucesso. E a CP, ou qualquer cliente, aperta‑me a mão e diz parabéns, e para o ano voltam a lembrar‑se de mim e pedem outra ideia. E o que é que acontece, e aqui é que está o problema, eu enquanto pessoa que vende criatividade não vou dar a mesma ideia outra vez. Vou cobrar um fee de criatividade pela mesma ideia? E esta ideia que era fenomenal, tornou‑se perecível, foi feita uma única vez e morreu ali. Mais, se eu dou uma ideia e o cliente não a quer por qualquer outra razão, a partir do momento que a apresento a ele, não posso apresentá‑la ao concorrente directo, porque ele nunca mais me vai falar. A ideia é perecível no minuto em que me sai da boca. Nós, que somos especialistas em ter ideias que funcionam para o público, transformamos através desse sistema essas ideias em perecíveis e o nosso trabalho em descartável, e não pomos qualquer custo do lado do cliente quando ele diz não. O cliente sabe que se disser não, aquela ideia nunca vê a luz do dia. Pusemo‑nos nesta situação. A minha epifania foi: eu tinha todas as ferramentas para entregar a mesma ideia, com o mesmo sucesso, sem receber briefing nenhum. Eu sei o que é que a CP quer e o que as marcas estão a fazer. Portanto se eu sei o que eles querem, e consigo ter a ideia, apresento‑a como minha e quero que eles sejam patrocinadores. A CP tem o mesmo retorno, investe a mesma coisa, é tudo igual, com a diferença de que se a ideia funcionar, ela é minha, eu posso fazê‑la de novo, e de novo. Passei a ser o tipo que sabe mais ou menos o problema que tu tens e vai ter contigo com uma solução que é minha, na qual eu quero que sejas meu parceiro. E vamos ganhar os dois. Hoje em dia tenho três ou quatro projectos que funcionaram muito bem à primeira e que são anuais. Hoje em dia posso não criar nenhum projecto novo, que já tenho o meu ano mais ou menos feito. Isto hoje em dia molda completamente o meu processo criativo. Parte de perceber onde é que há espaço no mercado, o que é que faz sentido.

Pode dar um exemplo?

O Chefs on Fire é um óptimo exemplo. O que é que se passa neste momento no mercado? Tens festivais de música onde vais comer mal, com excepção do Boom talvez. E depois tens festivais gastronómicos, aos quais só vais para comer, para falar sobre comida. Há um buraco aqui no meio: eu posso gostar de música, mas querer comer bem. Vamos criar um festival em que a música e a comida estejam em pé de igualdade. É um festival de música e de comida ou de comida e de música, como quiserem. As duas coisas são boas. Porque é que se come mal num festival? Podes escolher o melhor Chef do planeta, mas para fazer 20 mil refeições é uma porcaria. Portanto a primeira coisa a resolver é a escala. É dizer assim: o nosso festival vai ter 1000 bilhetes à venda, é um festival para se estar confortável, para ires com os miúdos, para estares deitado no chão, portanto é uma coisa pequena, e por ser pequena os Chefs vão poder fazer boa comida. Vais poder ouvir boa música, comer boa comida, a um preço óptimo. Encontramos aqui um território. Qual foi a ideia depois de encontrar o território? Vamos fazer um buraco no chão, 90 metros, enchê‑lo de lenha, e por os sete melhores Chefs portugueses a cozinhar a noite inteira só com fogo. E no dia a seguir abrimos a porta e temos música, e a comida que eles estiveram a cozinhar a noite toda. E de repente temos ali uma iconografia, um visual, temos um nome, temos a estrutura toda. E nós acabamos por fazer tudo em casa, desde o nome, à comunicação, vídeo, tudo.

Essa liberdade também traz riscos acrescidos?

Claro. Os Produtores foram o único projecto em que perdi dinheiro, só que não era meu. Era dinheiro dos meus investidores. Há aquele cliché de que aprendes mais com os falhanços do que com os sucessos, e acho que é totalmente verdade. Até aí pensava que o que me dava prazer era o sucesso das coisas, e essa não teve sucesso e deu‑me muito prazer, portanto comecei a perceber o que é que me dava gozo. Por outro lado percebi que nunca mais queria sentir a sensação de perder dinheiro que não era meu. Quando perdes uma coisa que é tua pensas como é que vais pagar a renda e tal, mas é tua, és um homenzinho, mudas de casa, fazes qualquer coisa. Quando perdes dinheiro de outra pessoa, mesmo que ele tenha muito dinheiro para perder, é uma espinha que não sai. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltava a cair nesse erro, e até hoje nunca mais voltei. Não sou uma pessoa com muito respeito pelo dinheiro, e isso é importante quando estás a arriscar, porque se fores agarrado ao dinheiro não arriscas em coisa nenhuma, mas percebi que uma coisa é teres à‑vontade com o teu dinheiro, outra é com o dos outros. Falhar a alguém é uma sensação que nunca quis voltar a repetir.

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Um comboio movido a paixão

Ainda há espaço e clientes para outros projectos de luxo?

Se olharmos para qualquer indicador objectivo, não só o turismo de luxo não quebra, não quebrou durante a crise de 2008, não quebra agora, como continua com um crescimento sustentado. Além disso é um eixo estratégico absolutamente imperativo para Portugal. Se há um problema com que estamos a lutar neste momento é que nós atraímos o tipo de turismo errado. Somos um país muito pequeno, e se recebermos turismo em massa, desvirtuamos a coisa. Estamos com turismo em massa. O que é que nós precisamos? Menos turistas, a gastar mais dinheiro, e a ficar cá mais tempo. Portanto o turismo de gama alta. Qual é o problema de Portugal? Temos óptimas condições, mas pouca oferta de turismo de luxo. O Porto é um óptimo exemplo. Os nossos clientes do comboio, 75% vêm de fora de Portugal, e nós é que tratamos deles do princípio ao fim. Temos vários fins‑de‑semana por ano em que não conseguimos arranjar um hotel de cinco estrelas. E restaurantes? Nós neste momento somos o melhor produto de luxo que há no país e existimos há três anos, sem nunca termos feito um produto turístico na vida. É claro que nós fomos ajudados por uma óptima ideia, um óptimo comboio, a linha do Douro, mas também sejamos honestos, o comboio já existia, estava recuperado desde 2010 e fechado num museu, a linha do Douro existe há 100 anos, o Douro já lá estava antes de nós cá estarmos. Foi só juntar as peças. Mais alguém o podia ter feito. As pessoas que criam coisas para o Douro todos os dias há 20 anos podiam ter tido a mesma ideia. Portanto há pouca coisa, há muita oportunidade de fazer, e para fazer bem feito, sem dúvida.

Até que ponto a paixão foi importante neste projecto e noutros que tem?

Acho que muito, neste projecto em particular, mas na maior parte deles.

Este projecto foi um risco total seu?

Foi e é. O projecto, até hoje, nunca deu um euro, só custou dinheiro. O Presidencial só existe porque nós tivemos a liberdade, em primeiro lugar, e a parvoíce para dizer: "Isto nunca vai ser negócio, mas nós queremos muito fazê‑lo". Sempre quis fazer porque era ideia da minha filha. Depois aquele comboio, aquele museu, as pessoas daquele museu e a ferrovia no geral, é uma coisa apaixonante. Não há ninguém que trabalhe na ferrovia que não seja apaixonado por comboios. Isso é uma coisa que eu nunca mais encontrei em mais nenhuma área. Queria muito fazer justiça àquelas pessoas, mas também foi um exercício de paternidade. Achei que era uma óptima ideia, enquanto pai, provar à minha filha de 10 anos que é possível uma pessoa estar à mesa de jantar e ter uma ideia, e ela acontecer. Achei que era uma óptima mensagem para lhe passar. Nunca foi para ser um negócio. E a coisa foi andando até hoje. Ainda hoje é completamente movido a paixão, e não é minha, é das 35 pessoas que fazem parte. É um trabalho incansável. O projecto é de todos. Fazer um serviço de nível de restaurante Michelin numa coisa que está em andamento, em pé, durante nove horas por dia, e sempre com um sorriso. É incrível. Portanto o projecto é muito mais deles do que meu. Eu nem a ideia tive desta vez. É completamente injusto que fique com os créditos deste projecto.

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Os eventos estão no nosso ADN

Como é que vê neste momento o sector dos eventos em Portugal?

Qualquer pessoa que conheça a realidade internacional sabe que somos um país muito bom a fazer eventos. É uma extensão de sermos bons a receber e fazer um evento, seja de que tipo for, é um exercício de receber. Culturalmente nós somos bons a receber, valorizamos coisas que são boas nos eventos: comida, conversa, música. Os eventos estão no nosso ADN, e exactamente pela questão do tamanho, somos um país muito dado à inovação. Há coisas que fazíamos com a Yorn, há dez anos, que ainda hoje em dia não se fazem lá fora. O Alive, o Boom são festivais inacreditáveis em qualquer lugar do mundo, competem com os melhores festivais internacionais, portanto nós somos muito bons a fazer isto. Tu olhas para qualquer coisa que a Desafio Global faça hoje em dia, aquilo é exímio, é quase clínico, não há um cabelo fora do sítio, não há nenhuma coisa a correr mal. Se isso é verdade, como qualquer outra área da comunicação, ela sobe e desce e tens momentos em que sentes que tudo é requentado, e tens momentos em que sentes que o mercado está a correr para a frente. Há dez anos o mercado era um monstro, não havia nada que não se fizesse. Fizemos um concerto numa plataforma flutuante no meio do rio Douro. Lembro‑me de sentir que não havia nada que pudesse dizer que não fosse levado a sério.

E acha que estamos noutro momento por causa das marcas ou das agências?

Acho que a crise de 2008 fez regredir um bocadinho o mercado. Fez‑nos ficar mais cautelosos, e acho que nunca recuperamos totalmente a vontade de arriscar. Há 15 anos quando inovávamos era em territórios que já conhecíamos. Fazíamos um evento de música, muito fora, mas era um evento de música. Hoje em dia, com o digital, com uma cultura de indignação e de resposta automática, as marcas não têm ferramentas para combater, não conseguem acompanhar, não conseguem antever, há muito mais medo. E esta cultura é em tudo, e deixou as marcas um bocadinho mais medrosas. Os orçamentos também nunca recuperaram o que eram em 2005, por exemplo. Eram completamente diferentes do que são hoje. Também acho que os directores de marketing, as pessoas que gerem as marcas, a vaga que hoje em dia está em posições de gestão, não é naturalmente propensa a grandes riscos. A vaga anterior cresceu ali nos anos 2000, em que havia uma propensão natural ao risco. E estas pessoas que estão agora nas direcções de marketing estão habituadas a ter cuidado. Já não tens Antónios Fuzeta da Ponte, como tinhas no tempo da Yorn, que era um cliente formidável. Hoje em dia tenho clientes muito bons, mas contam‑se pelas mãos os clientes que te pedem para abanares o barco. Talvez o Filipe Bonina, da Sagres, o Filipe Gomes, da NOS. Mas a maior parte deles é: eu quero ir daqui para ali. Como é que é a maneira mais segura de lá chegar?

Ou seja, apostam na mesma em eventos, e essa aposta é crescente, no entanto com menos risco?

Vou contar uma história. O Naked, a primeira vez que ganhei uma série de prémios, foi aquele evento da Yorn Store em que nós oferecíamos a roupa às pessoas que viessem todas nuas. E eu apresentei essa ideia ao António Fuzeta da Ponte, que era meu cliente na altura. Foi recusada em cinco segundos. Ele disse: “isso é absolutamente parvo, está fora de hipótese, passa já para a próxima”. E dei‑lhe outra ideia que se chamava Yorn House Party, que era fazer uma daquelas festas em casa à filmes americanos; agarrar num miúdo, distribuir folhetos no liceu, eles apareciam todos na vivenda, havia uma banda a tocar na sala, típico filme americano. O António, nesse dia, para aí à 1h da manhã, manda‑me uma mensagem e diz: “Olha gostei tanto da ideia da House Party, que só por causa disso vou apresentar a outra também”. E passado uns dias liga‑me a dizer: “Não vais acreditar: querem fazer as duas”. Mas esta cultura de não teres medo de fazer figura de parvo em frente a um cliente, e um cliente não ter medo de fazer figura de parvo em frente ao chefe dele... esta cultura não tive a sorte de reencontrar. Não quer dizer que ela não exista. Hoje em dia tenho um pézinho muito pequenino dentro do mercado, muito mais gente conseguirá responder mellhor do que eu.

Que conselhos daria a um jovem, a um aluno seu, que se quisesse lançar no mundo dos eventos?

Diria para irem estagiar com o Pedro Rodrigues (risos). É uma área muito gira, mas tem uma dificuldade. Todos os miúdos acham que querem trabalhar em eventos, porque acham que eventos são festivais, é estar ali a curtir, e depois a maior parte deles percebe que aquilo não é tão fácil como parece, tão giro como parece. Se tiver bases como deve ser de organização, de gestão de tempo, de recursos, de dinheiro, se aprender essas coisas, e não se deixar prender com as outras, e continuar com uma cabeça muito aberta, porque os miúdos novos têm uma tendência a inovar, acho que é a mistura perfeita. É uma área que pode ser muito gira, e há muita coisa para ser feita.

 

Cláudia Coutinho de Sousa
Fotografia: António Camilo