“Sou um líder, nasci assim”

12-09-2017

É um dos mais experientes especialistas portugueses em segurança, quando pensamos em grandes eventos como festivais de música ou concertos.

Há cerca de um ano na Prosegur, onde coordena esta área, Mário Lavrador esteve à conversa com a Event Point. Uma entrevista onde se fala de ser inteligente, e gostar daquilo que se faz.

Conte‑nos sobre o seu percurso profissional? Como chegou à área da segurança em eventos?

Desde miúdo que esta é uma área que me apaixona, tinha aqueles sonhos de ser o Super‑Homem, de ajudar as pessoas com dificuldades, e protegê‑las. Comecei a praticar alguns desportos, nomeadamente boxe e atletismo e, entretanto, em 1990 ou 1991, quando começaram a aparecer os concertos em Portugal, sou convidado a fazer parte de um grupo para fazer segurança. Na altura não existiam ainda empresas de segurança, eram grupos de pessoas que eram contratados para isso. Gostei logo da experiência e decidi dedicar‑me a esta área dos eventos, das grandes multidões, dos espectáculos, Penso que serei a segunda pessoa com mais idade em termos de coordenação/gestão de eventos.

E quais foram os marcos mais importantes nesse percurso?

É difícil estar a destacar um ou outro, porque aconteceram tantos, que não consigo dizer qual foi o que me marcou mais. Quando acaba um evento e as coisas correm conforme os promotores pretendem e nós idealizamos, é isso que nos faz feliz, e que nos marca, no fundo. Houve situações, ao longo do meu percurso profissional, com mais ou menos dificuldades. Tenho em mente uma situação que aconteceu num dos festivais, em que estava iminente a queda da estrutura do palco, e em que, com a colaboração da polícia, conseguimos recuar 40 mil pessoas sensivelmente 20 ou 30 metros.

Foi no Alive...

Sim. E a parte mais difícil não é conseguir recuar a multidão, o que é difícil é a multidão regressar à zona de frente de palco sem atropelamentos, com a ânsia de serem os primeiros. Foi necessário combinar uma estratégia entre nós e as forças de segurança, que correu lindamente. Manteve‑se o cordão, criando ali uma pressão, e fomos cedendo devagar, sem a multidão se aperceber que estava a andar para a frente. Quando se aperceberam tínhamos as 40 mil pessoas junto à frente de palco. Isso foi gratificante e recebemos todos os parabéns. É isso que nos marca.

Quais eram as grandes diferenças entre o que era o trabalho na altura em que começou, e o que é hoje em dia? Como foi essa evolução?

Há uma grande diferença na estrutura, na organização, e na planificação. As coisas antigamente ainda eram feitas de forma amadora. Mas isso serviu para hoje termos uma percepção da real necessidade, porque muitas das vezes é estar no terreno que nos ensina. Posso dizer que antigamente era uma segurança mais selvagem, havia alguns excessos, inclusive porque a ideia que se criava da segurança era uma que hoje já não tem nada a ver. Hoje existe outro conceito, e ainda bem.

Era um conceito mais musculado?

Sim. Eu sou um dos que vêm acabar com a situação de bater nos miúdos à frente do palco. Antigamente cada miúdo que caía no palco era agredido. Quando sou escolhido para ser responsável da frente de palco, achei que não era correcto o tratamento, já que a invasão da pessoa naquele espaço não era um acto provocatório, era um acto alegre, feliz. E comecei a partilhar a opinião de alguns produtores de que os elementos da frente de palco estavam ali para auxiliar os miúdos. Assisti, ao longo de toda a minha carreira, a algumas situações muito complicadas, porque as pessoas desviavam‑se e os miúdos caíam. E então adoptámos outra estratégia que era incentivar os homens a protegerem os nossos clientes, a agarrá‑los no ar, ajudá‑los, e depois encaminhá‑los pelas saídas. E começámos a melhorar a imagem da segurança. Como diz um produtor que conheço: a frente de palco não é segurança, é auxílio. E tem lógica, é uma zona em que é necessário prestar auxílio, a pessoas que se sentem mal, ou que precisam de uma garrafa de água, ou ajudar a tirar um indivíduo que não quer mais lá estar. Esse conceito mudou, e quem não o fizer é tudo menos profissional.

Podemos dizer que, para usar aqui uma imagem, a frente de palco é a tropa de elite dentro da segurança de um festival? É a posição mais sensível, mais delicada entre as várias posições?

Eu acho que não, mas há quem defenda isso. Acho que hoje é um todo. São muito importantes as entradas. Como coordenador, a minha posição é a entrada. Se entrar com algum à‑vontade é logo o início do seu bem‑estar no evento. E nós temos de começar a dar esse bem‑estar, porque as pessoas vão estar ali duas, três, quatro horas. Depois existem as equipas volantes, que informam, que prestam auxílio, que comunicam com as várias entidades quando existe algum problema. Também são muito importantes. Aqui nesta casa o que nós briefamos os homens é que não se trata só de vestir a farda, e estar ali presente, é prestar auxílio às pessoas. Elas são nossas clientes, nós existimos porque elas pagam bilhete. E a minha preocupação é que estejam bem, independentemente de não as conhecer. A frente de palco, de facto, é mais trabalhosa, mas depende também do estilo de musica do festival. Se for fado, a frente de palco é calma, se for heavy metal é muito complicado. É onde está a maior concentração de pessoas, mas pela experiência que tenho não é só isso que é importante.

O que é que lhe dá mais trabalho, fazer o Cooljazz ou o Vagos Metal Fest?

O Vagos Metal Fest. O Cooljazz é muito pacífico. Mas isto da segurança não é uma ciência exacta, não é matemática, e por isso é que é apaixonante. Temos de encarar cada trabalho como se fosse a primeira vez. Temos de estar sempre atentos. O Cooljazz é um evento muito soft, o escalão etário é de 35, 40 e mais velhos, pessoas mais ponderadas. O Vagos Metal é outro estilo, para o qual nós também estamos preparados, mas é muito mais movimentado. Não digo perigoso, mas é mais trabalhoso.

É capaz de destacar um ou outro trabalho que lhe tenha dado gozo fazer?

É difícil, há festivais que adoro fazer. Basicamente cheguei a fazer quase todos os festivais nacionais. Começo a fazer como colaborador, requisitado por outros, até que um dia desafiaram‑me a formar o meu grupo? Os próprios clientes começaram a incentivar‑me e a pedir que me contratassem especificamente. Um dia decidi arriscar. Passei um ano no deserto, porque a partir do momento em que montei um grupo, mesmo aquelas pessoas que me incentivavam, nesse ano não me contrataram. No segundo ano associo‑me a outra pessoa e aí começa a minha ascensão enquanto coordenador de eventos. Decidi que tinha que vencer. Costumava fazer eventos em locais muito complicados e então idealizei a seguinte estratégia: fui aos bairros mais problemáticos que se possa imaginar, e fui buscar as referências para trabalharem comigo. Era o tipo mau de Chelas? Fui buscá‑lo. Usei o atrevimento que eles tinham e comecei a incutir‑lhes educação. Deu muito trabalho mas resultou.

Porquê é que achou que isso podia resultar?

Na altura o público media forças com a segurança. Faziam asneiras de propósito para provar que não tinham medo de nós. Eu por exemplo sou da Madragoa, por isso qualquer pessoa que fosse da Madragoa sabia que estava no evento o Marinho, logo não iam criar problemas. O mesmo com os outros bairros. Tinha um cigano na minha equipa, pelo que quando havia um problema com ciganos, era ele que ia resolver. Na altura foi isso que eu fiz, depois a estratégia foi‑se alterando. Há alguns que hoje ainda se mantêm, e outros tivemos que os despedir porque acabaram por não se adaptar porque não conseguiram despir essa máscara de agressividade. Hoje em dia a segurança não tem que ser agressiva, tem que ser competente, inteligente e algumas pessoas infelizmente não querem optar por isso.

Qual é a característica principal de alguém que queira a trabalhar numa equipa sua num festival?

Tem de ser inteligente, ter raciocínio rápido, destreza, não se pode esconder, não pode ter medo, e deve ter atenção, e gostar daquilo que faz.

Olhando para um evento tão complexo como pode ser um festival de música, quais são os principais desafios em termos de segurança?

Começa com o planeamento das entradas. Depois é a disponibilidade para lidar com pessoas mal dispostas, que dormiram mal, que tiveram um dia complicado, mas compraram um bilhete. Temos de procurar entender. Os produtores que nos contratam exigem a simpatia para com as pessoas. E aqui entra a formação, o facto de fazer isto porque gosta. E depois gerir aquela multidão, fazer com que nada grave aconteça. É extremamente gratificante quando o evento acaba, e vemos as pessoas a sair bem. Nós não temos a noção, mas são horas e horas a sair. No Alive toda a produção e a polícia têm uma grande preocupação em que as pessoas não estrangulem ali (em Algés) na saída. Há uma grande vontade dos produtores em prestar um bom serviço.

Os organizadores estão sensíveis para a necessidade de assegurar equipas suficientes de segurança para que tudo corra bem, ou é difícil equilibrar ali as coisas entre custo e investimento? O que é que a sua experiência lhe diz sobre isso?

Há uns que não olham a valores, há outros que pensam que não há necessidade de gastar tanto. E há ainda outros que não têm noção nenhuma. E isso tem a ver com as equipas que contratam. Se fosse produtor não ia para a solução mais barata, porque numa situação de calamidade, não sabem o que têm de fazer, não estão formados para isso. Por isso custam menos de metade, ou três vezes menos do que nós. Mas isso também são produtores com pequenos eventos. Se formos falar a nível de grandes eventos todos sabem que o sucesso depende também da segurança.

E a parte dos artistas, lidar com tantas exigências? É complicado?

É complicado, tem que se ter estômago para isso.

Lembra‑se assim de alguma coisa estranha com que tenha tido de lidar?

O maior problema é quando pedem droga. Não é o produtor que faz essa exigência. Mas depois quando estamos no terreno pode haver managers que questionam onde é que é possível arranjar isto e aquilo. E isso é crime. Está fora de questão. A nível de produção nunca houve ninguém que questionasse isso, ninguém. Assisti a uma situação na Zambujeira, no Sudoeste, em que já estava a decorrer o festival e no segundo ou terceiro dia há uma operação stop da GNR. Às tantas está uma carrinha com uma das bandas que a GNR mandou parar e está a artista a pedir droga à GNR. Há coisas caricatas que acontecem nos festivais.

Creio que é pai. Como é que encara essa responsabilidade de zelar pela segurança de filhos de outros pais?

É uma preocupação que nós temos. Aí entra a formação, a maneira de actuar com os miúdos terá que ser diferente da foram de lidar com homens de 40 ou 50 anos. Temos que os acompanhar, entender e protegê‑los. Mas de uma coisa os pais podem estar descansados: temos uma grande preocupação em que nada aconteça aos miúdos. Não permitimos que façam fogueiras e grelhados no campismo. E facilitamos que os pais entrem. Se chegar lá e disser “eu tenho aí a minha filha”, nós facilitamos, controlando sempre. Mesmo quando há exageros a nossa preocupação é ligar aos pais e já aconteceu eles virem buscá‑los. Prestamos todo o tipo de auxílio. Mas sim, como pai preocupa‑me. E preocupam‑me certas atitudes dos miúdos. O que é que fazemos para os pais estarem mais descansados? Damos segurança e auxílio, estando mais próximo deles. Não deixava ir a minha filha se a informação fosse negativa. Há uma coisa com que eu estou a lutar e aqui é um pouco difícil porque tem a parte económica: começar a criar mais regras em termos de campismo. No inicio havia dois ou três roubos, mas depois aumentou. E há também os incautos, que não têm cuidado. Entristece‑me existirem situações de roubos, mas também lhe digo que chegamos a criar dois contentores para depositar os valores, gratuitamente, em troca de uma pulseira e houve cinco adesões. Acaba por ser desmotivante, e não é nada que não informemos na entrada, para andarem sempre com as bolsas com dinheiro, não deixarem valores e telemóvel. Existem problemas, mas que procuramos que não aconteçam. Isso é uma preocupação inclusivamente do produtor.

E como é a articulação com as forças de segurança?

Hoje em dia é boa. Claro que se trabalha melhor com certos responsáveis do que com outros. Alguns ainda pensam que só são eles e que nós não existimos, mas há outros que dão valor e partilham e colaboram connosco e nós aprendemos uns com os outros.

Depois de um festival como é que relaxa?

Antigamente, antes de morar onde moro agora, em Azeitão, junto com três ou quatro casais amigos íamos comer e beber e cada um partilhava as suas histórias. Hoje em dia é diferente, vou para casa ter com os meus animais e não saio durante um dia.

Disseram‑nos que nas comunicações rádio o tratam por padrinho. Tem ideia de quantas pessoas já coordenou ao longo dos anos? Quantos afilhados tem?

É verdade, sou padrinho de muita gente e agora até posso dizer que me tratam por patrão, ainda que não o seja. A palavra padrinho é de carinho. Sou um líder, nasci assim e o segredo é dar valor a quem nos ajuda. Não há ninguém neste mundo que não tenha que ter uma boa equipa. Sou o que sou porque tive muita gente a ajudar‑me, e por isso sou o padrinho. O telemóvel está ligado 24 horas por dia, e muitas vezes às quatro da manhã saía de casa para ir em auxílio de A, B ou C. Preocupo‑me com a vida pessoal da equipa. Isto é uma família. E quando tiver que ralhar e castigar também castigo e às vezes até sou duro. Mas aceito uma crítica. Analiso. Dou razão. Sou amigo do meu amigo. Também criei alguns inimigos. Tenho a noção de que não sou o melhor mas tento ser sempre o melhor em todos os eventos que faço.

Perfil

Vive em Azeitão, e é aí que se dedica a uma das suas paixões: os pássaros de bico curvo. Cria periquitos ingleses, algo que o ajuda a relaxar de uma actividade altamente stressante como a da segurança. “Quando estou a tratar dos pássaro estou em paz”, sublinha. Mário Lavrador tem ainda um porco, uma cadela e dois gatos. É fã de futebol e do Belenenses, o que considera ser “um estado de alma”. Adora cozinhar e, se pudesse convidar um político para almoçar, a escolha recairia em Marcelo Rebelo de Sousa .

 

Foto: António Camilo