“Temos de ser sempre nós próprios a tornar aquilo que produzimos obsoleto”

22-08-2018

Presidente da Câmara de Paredes de Coura desde 2013, Vítor Paulo Pereira tem uma ligação de grande afectividade com o Festival de Paredes de Coura, não tivesse sido ele um dos fundadores do evento, há mais de 25 anos. A Event Point esteve à conversa com o autarca durante o festival.

Como é para si, hoje em dia, olhar para o Festival de Paredes de Coura, não como organizador, mas como autarca?

É diferente. Quem conhece o outro lado, também consegue muitas vezes compreender as necessidades e as preocupações do festival, e contribuir para os dois parceiros [autarquia e organização do evento] caminharem no sentido certo. Há a preocupação com o conforto das pessoas, com a relação que existe entre o festival e a vila, porque o festival também vive muito da vila, com a descentralização programática que procuramos fazer. Naturalmente que se o festival de Coura também tem este nível de organização é porque em ambos os parceiros existe uma noção da importância e do rigor exigido.

Essa experiência dos dois lados é uma mais-valia…

Um festival é organização pura e dura. As pessoas pensam que numa organização o importante é o cartaz.

O cartaz ajuda a chamar público…

Sim, e depois se houver rigor, se houver condições de campismo e de conforto, os pequenos pormenores, tudo arranjadinho, com aquele verde, naturalmente ajuda.

Acredita que foram esses aspectos que ajudaram a posicionar o festival?

Sim. São os próprios elementos da organização que o dizem: é tão importante o palco como as casas-de-banho. Fazer um festival com um grande cartaz, com condições de higiene, de conforto, de vivência no campismo más, uma coisa contamina a outra. E agora com as redes sociais, onde existe uma maior pressão do olhar, a fasquia da organização, de rigor, de logística, de produção, aumentou substancialmente.

Hoje em dia consegue também despir o fato de presidente e ir para o meio do recinto divertir-se?

Não, mesmo quando trabalhava na organização. Uma empresa que está a organizar um evento não pode querer ter a tentação de participar e divertir-se nele. Rigor é rigor. Depois fazemos uma mini festa entre a organização e os amigos, mas é só a partir do momento em que acaba o concerto no palco principal. Há uma reunião de uma hora para planear as desmontagens, porque no outro dia há ainda trabalho duro, e que é tão importante como a montagem. Depois de uma reunião com os chefes de serviço, de equipa, lá para as três da manhã, aí a malta está preparada para se divertir. Só depois dessa reunião há descompressão. Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. É evidente que neste processo de crescimento, tivemos dificuldades muitas vezes, misturávamos a afectividade com o festival, com a organização e não se podem misturar as coisas. A organização tem que ser rigorosa, com velocidade institucional a resolver problemas, porque o festival é uma máquina viva. Muitas vezes as pessoas não se apercebem, mas estão a acontecer problemas constantes, e a organização tem que mostrar que está capacitada para resolver os problemas, sem que isso afecte a vida das pessoas ou o seu divertimento.

Que tipo de apoios dá a Câmara neste momento ao festival?

A Câmara tem um protocolo antigo, que tem vindo a cumprir. O apoio é ao nível a logística, das condições, sanitários, ou seja é um trabalho de colaboração, uma vez que aqui entre a Câmara Municipal, mesmo antes de eu estar cá, houve sempre uma relação muito próxima com a organização. Apoiamos na montagem das infra-estruturas, no cuidar do próprio rio, nos melhoramentos que são introduzidos e feitos ao longo do ano. E o que se tem constatado é que todos os anos os festivaleiros notam melhorias, e consideram que essas melhorias fazem parte de uma preocupação e de um carinho que a Câmara Municipal e a organização têm para com os festivaleiros e com os campistas.

Qual é a importância hoje em dia do festival aqui para o concelho?

Do ponto de vista económico é mais do que visível. Há aqui alguns comércios que se não fosse o festival teriam maiores dificuldades de sobrevivência, mas há outra faceta que é a visibilidade do território. O festival é bom porque dinamiza a economia de uma forma transversal, até aos negócios mais díspares. Os festivaleiros chegam a todo o lado. A vertente económica é por demais evidente e os próprios courenses reconhecem. Depois há a dimensão territorial, a afirmação territorial, a imagem que as pessoas que são de fora de Paredes de Coura têm do nosso território, a imagem de modernidade, de criatividade, de inovação. E depois o orgulho que traz aos courenses, e que leva a que muitos continuem, graças ao festival, a ter uma relação umbilical e de afectividade com a terra. Conheço muitos courenses que até marcam férias antes do festival fora de Paredes de Coura, e que fazem sempre questão de no evento estarem cá. A vila enche-se de um colorido inimitável, e de uma vida, que até os miúdos pequeninos gostam e muitas vezes incentivam os pais a virem a Paredes de Coura e a não quebrarem essa relação. Além do mais, contraria muitas vezes o discurso da geografia. Sabemos que muitas vezes há um certo desânimo das pessoas que acham que são vítimas do determinismo geográfico, mas mostra que o que é verdadeiramente importante é a capacidade das pessoas de criar, e não o território onde se vive.

E no resto do ano, em termos de eventos, o que nos pode dizer?

Nós temos uma programação ao longo do ano. O festival é de facto o grande chapéu da modernidade. Não procuramos fazer eventos para o mercado interno, não nos interessam as feiras medievais, aquilo que costuma ser feito. Todos os eventos que fazemos, fazemos para fora. Um exemplo é o Congresso Internacional Vegetariano, ou o Mundo ao Contrário, que traz milhares de pessoas a Paredes de Coura. O concelho tem um evento internacional da Lego, um dos três que existem no mundo, um na Dinamarca, outro no Japão, e este cá. Ou seja, fazemos eventos internacionais. Se tem pouca gente não nos preocupa, porque os eventos são como as árvores, plantam-se, cuidam-se. O próprio festival, e todos os eventos que fazemos, funcionam como um laboratório, todos os anos têm que se fazer reuniões de avaliação, e procurar melhorar. Porque se procurarmos viver à sombra do sucesso, os eventos acabam por morrer rapidamente. Temos de ser sempre nós próprios a tornar aquilo que produzimos obsoleto, e não estar à espera que seja outro evento que torne o nosso obsoleto. Isso obriga-nos a criar melhor, a sermos mais ousado, e às vezes até a seguir caminhos mais difíceis.

Este ano há algum concerto que não quis perder?

Arcade Fire. É a grande atracção, pelo facto de também ter havido o concerto mítico de 2005. Toda a gente ficou maravilhada, e muitos nem sabiam quem eles eram. Coura sempre teve esse lado do risco, de apresentar bandas novas. A partir de 2004/2005 o festival passa a ter editorial, deixa de seguir o caminho comercial. Isso levou a que se perdesse algum público, mas o festival de Coura passou a ter editorial, passou a ter critério. Foi uma decisão difícil, mas se calhar foi a decisão que garantiu sustentabilidade e viabilidade financeira e até de reconhecimento externo.

Qual é a história que mais recorda ao longo destes anos do festival?

Há muitas. Foi importante crescer com a ingenuidade, com o erro, com o fracasso, e com idealismo bacoco de querermos ser nós a transportar os músicos, a alojar os músicos, de muitas vezes investir mais numa banda porque gostávamos, e não porque pudesse trazer um acréscimo do ponto de vista financeiro à organização. Lembro-me quando os Thindersticks ficaram alojados na Casa do Paço, em Ferreira, e a senhora liga em pânico a dizer que faltava uma cama. Eles estavam lá todos numa sala, a comer numa mesa enorme, e para arranjar um novo quarto tínhamos de passar pela sala. Então eu e o Filipe [Lopes] fomos lá ajudar a senhora e estávamos a tentar de uma forma sorrateira, passar com o colchão por trás dos músicos que estavam a comer virados para a janela. Eles viram-se para trás e dizem: “olha, vai ali a nossa cama”. Fomos apanhados em flagrante.


Foto: Arménio Belo