Burnout: Reconhecer sinais e agir

Reportagem

13-03-2023

# tags: Saúde mental , Eventos , Turismo de Negócios

A covid-19 teve um impacto nas nossas vidas que foi muito além dos confinamentos. Levou muita gente a repensar a carreira e as opções de vida.

Fenómenos como a “Great Resignation”, “Soft Quitting”, “Burnout” ocorreram de forma transversal em muitos setores, e o dos eventos não foi exceção.

Alguns conceitos

The great resignation

A pandemia contribuiu para que milhões de pessoas, voluntariamente, deixassem o seu trabalho e a área do turismo e hospitalidade foi das que perderam muitos profissionais. E esta tendência parece continuar no pós-pandemia. Segundo um estudo da Pew Research Center, as desistências, em 2021, situam-se sobretudo no grupo etário dos 18 aos 29 anos, devido às remunerações, falta de oportunidade de carreira, sensação de falta de respeito no trabalho, questões ligadas ao acompanhamento dos filhos e falta de flexibilidade. Muitos profissionais começaram a repensar as suas prioridades e saíram do setor, em busca de outras oportunidades. Isto impacta os recursos humanos das mais variadas empresas e já abordamos este desafio neste debate.

The quiet quitting

Não se trata de uma desistência, neste caso, mas de trabalhar dentro dos limites da descrição da função. Por outras palavras, os profissionais não vão além das horas de trabalho definidas e das tarefas a executar. Estão disponíveis para novos desafios e valorizam o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.

Burnout

A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a 27 de maio de 2019 a inclusão do burnout nesta lista. Segundo o site da OMS, burnout é considerado um síndroma ocupacional e resulta “do stress crónico no local de trabalho que não foi gerido com sucesso”. É caracterizado por: “falta de energia ou exaustão, aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados com o trabalho, e eficácia profissional reduzida”.

Tudo a correr, sem tempo para pensar

O setor sempre conviveu com o stress, aliás, gestão de eventos é considerada uma das profissões mais stressantes que existe, segundo rankings produzidos por diversas fontes internacionais, e é fácil imaginar porquê. Um evento tem que acontecer àquela hora, naquele dia e não há segunda tentativa.

O regresso aos eventos presenciais está a ser marcado por uma grande intensidade de trabalho. Os prazos encurtaram, os eventos são decididos em cima da hora, deixando para a execução cada vez menos tempo. Para alguns profissionais isto está a ser demasiado. Por outro lado, a pandemia trouxe o teletrabalho, mudança de rotinas e hábitos, cujas consequências só os próximos anos poderão revelar.

Já em 2016, a Skift, um projeto editorial americano com grande relevância na nossa indústria, publicava um artigo sobre o facto de alguns bons organizadores de eventos desistirem da carreira. Entre os problemas desta profissão, e que são transversais a vários mercados, estavam questões como a falta de reconhecimento, tangível e intangível; a microgestão; burnout; pouca autonomia; falta de apoio; restrições em termos de criatividade; falta de investimento; relação entre vida pessoal e profissional; entre outros. Sobre o burnout, o artigo lembra que nem sempre está ligado ao stress, embora este seja um fator. Pode ser provocado por falta de apoio e controle, mau equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, mau ambiente de trabalho e mesmo escolha errada de carreira. 

Em 2022, a Skift voltou ao tema, uma vez que a intensidade com que regressaram os eventos exigiu a reflexão e pistas para encarar o problema. O artigo volta a sublinhar as diferenças entre o stress, que é inevitável nesta linha de trabalho, e o burnout. Stress, por exemplo, é momentâneo (durando mais ou menos tempo), mas, em última análise, não retira a possibilidade de alguém funcionar no dia-a-dia. O burnout pode surgir quando alguém experiencia stress “excessivo” e por longos períodos de tempo. O burnout afeta as emoções, a motivação, pode levar mesmo à depressão e ser altamente incapacitante.

Na primeira pessoa: o excesso levou à baixa médica

A. trabalha num venue para eventos. Nos últimos meses de 2022 teve de meter baixa. “Antes de ir de férias já andava a sentir que estava desinteressada, havia muita coisa que não conseguia acabar sozinha, tinha muitos assuntos pendentes, sentia muita pressão”. Essa pressão vinha de um evento muito grande para organizar, e que esbarrava na falta de respostas e de decisão. Passado um tempo, A. praticamente teve de alterar tudo, “porque não era bem aquilo”.

No período de férias não conseguiu “desligar”, e quando voltou ao trabalho continuou no mesmo registo. “A minha cabeça estava sempre a carburar, de noite e de dia, sobretudo de noite. Não dormia. À noite mandava e-mails para mim própria para não me esquecer das coisas”, conta. A exaustão chegou. Terminado o evento, “desabei”, partilha com a Event Point. “Tive de parar e ir ao médico, tinha atingido o limite”.

O empregador deu-lhe apoio. “Toda a gente reconhece que sou um ‘pau para toda a colher’, agarro tudo, não sei dizer que não, e também é isso que me levou a este estado”, confessa. O médico passou um atestado para um mês (que depois renovou) e medicação. “Mas estava em casa e estava desanimada, triste, não me apetecia fazer nada, com dores de cabeça, apática”, relembra. Voltou ao trabalho passado um mês e meio, mesmo contra a opinião do médico. “Eu própria sentia-me mal por estar em casa, então regressei aos bocadinhos”, diz.

Ao voltar, decidiu “mudar um bocadinho a estratégia, tenho de olhar mais para mim”. Isso consubstancia-se em “tentar dizer que não a algumas coisas, distribuir melhor o trabalho”. A. lembra que “vestia a camisola a 100% e deixava um bocadinho a família para trás” e isso é algo que vai ter mesmo de alterar.

Questionada sobre se a pandemia acentuou problemas já existentes, A. responde que sim, já que se habituou a não ter horas. Depois do regresso ao escritório, continuou a levar o computador para casa. “Agora o computador fica na empresa, senão a tentação é muita”.

Nestes últimos tempos, “pensei desistir do meu emprego”, mas “adoro o que faço. É o emprego da minha vida”.

Na primeira pessoa: a mudança de área

B. trabalhava numa empresa de organização de eventos desportivos e tinha um percurso de anos na indústria dos eventos. “É uma área que nos exige muito, o telefone toca a que horas for”, lamenta. “Havia dias em que conseguia trabalhar das 9 as 5, mas em compensação tinha que estar disponível 24 horas. Cheguei a ter trabalhos em que chegava o fim de semana e eu tinha que estar com preocupação, independentemente do que tivesse para fazer ou não, de estar disponível para um telefonema”.

Um dos problemas do setor é a tendência de ver um profissional como um “faz tudo”, alerta a entrevistada. “É sempre uma área de stress, as coisas têm que acontecer num determinado momento, mas havendo uma distribuição de tarefas é sempre mais fácil. No meu caso, a minha função era 360º e, portanto, eu entregava eventos de A a Z. Fazia desde o planeamento todo das provas, tinha que tratar das viagens dos atletas, reuniões com câmaras e instituições, tratar do merchandising todo, produção”, partilha. Financeiramente, B. tinha a noção que tinha um ordenado um bocadinho acima da média. Mas esse facto tornou-se “relativo”. O que é, afinal, ser bem pago? “O que é que paga a minha estabilidade, de estar um fim de semana com família e amigos, sossegada; estar no meu período de descanso e ter que estar disponível e se não estou, ‘cai o Carmo e a Trindade’. E não ter que ter essa falta de ar que alguma coisa vá falhar, porque é certo que, se nós não estamos, não vai lá estar ninguém”, lamenta. No caso de B., o burnout não foi motivado por colegas ou chefias, mas pelo trabalho em si.

Quando começou a falhar, o chefe disse-lhe: “Eu percebo que tu estás cansada, mas isto vai ser sempre assim. Ou aguentas ou não aguentas”. Isso fê-la refletir. “Decidi mudar de área. Gosto muito da área de eventos, mas decidi que ia mudar porque ‘consome uma pessoa’. Quando acordava, o meu coração já estava disparado a pensar no que eu tinha para fazer”.

Nesse processo, foi seguida por um terapeuta, cujas sessões terminaram na altura em que se despediu. “Recomendo muito. É um acompanhamento gigante. A terapia, no meu caso, foi essencial para conseguir ter a clareza de pensamento e de tomada de decisão. Entramos num remoinho e depois é difícil sair dali. Se for um bom terapeuta, faz-nos parar, pensar e priorizar”, refere B.

Depois de entregar o último evento, no dia seguinte a nossa entrevistada despediu‑se. O chefe foi muito compreensivo. “Gabou‑me a coragem de o fazer. Eu tenho de me priorizar, tenho 35 anos, ainda não tenho filhos, mas tenho intenções de ter, quero ter uma vida. Problemas todas as áreas têm, mas há limites. Não consigo conceber isto para mim sozinha, quanto mais numa família”.

Decidiu então mudar de área, contando para isso com todo o suporte e apoio da família.

Hoje sente-se bem, mas “claro que tenho saudades e alguma nostalgia”.

Sinais de que algo está mal

Há um conjunto de sinais que podem indicar problemas ao nível da saúde mental e que devem ser um alerta para a necessidade de intervenção. Marta Santos, Professora Associada do CPUP – Centro de Psicologia da Universidade do Porto, elenca esses sinais: “A sensação de cansaço permanente, dores de cabeça, alterações de apetite e do sono, sentimentos de fracasso, insatisfação com a performance e lentificação na realização do trabalho, tendência para o isolamento, dificuldade em cumprir horários ou aumento do absentismo, são alguns exemplos”. Uma vez identificados este conjunto de sinais, há ajuda especializada e individual a considerar, mas, segundo Marta Santos, não se pode esquecer “a responsabilidade que a organização e condições de trabalho assumem na produção destes impactos para a saúde. Será preciso, por isso, elaborar um diagnóstico dos fatores psicossociais de risco e intervir nas condições de trabalho que podem estar na origem destes problemas”. A psicóloga detalha que, “na definição de planos de ação e de prevenção, é habitual existirem desde programas de sensibilização para interlocutores-chave das empresas até à definição de gatekeepers (trabalhadores que não teriam que ser necessariamente especialistas em saúde mental, mas com formação para prestar atenção a sinais de distress, fornecer um apoio emocional inicial e reencaminhar para os serviços necessários)”.

Marta Santos aconselha as empresas na área de eventos, cujos profissionais atuam num cenário de intensa pressão, a fazerem “uma identificação das condições de trabalho e de emprego destes profissionais por forma a ser possível elaborar um diagnóstico dos fatores psicossociais de risco a que possam estar expostos e consequentes impactos para a saúde”. Este conhecimento pode permitir “elaborar um plano de ação que permita criar as condições necessárias para a realização de um trabalho bem-feito, sustentável, preservando a saúde e bem-estar dos profissionais”.

A pandemia terá agravado problemas de saúde mental. Um estudo sobre “Saúde Mental em Tempos de Pandemia (SM‑COVID19)”, publicado pelo Ministério da Saúde, teve como objetivo avaliar o impacto da pandemia “na saúde mental e no bem-estar da população em geral e dos profissionais de saúde, tendo em conta dimensões como ansiedade, depressão, stress pós‑traumático, burnout e resiliência, entre outras”. O estudo indica que “cerca de 25% dos participantes apresenta sintomas moderados a graves de ansiedade, depressão e stress pós-traumático”.

No que diz respeito a grupos profissionais, “destaca-se uma maior percentagem de indivíduos em burnout entre os profissionais em lares de idosos (43%), profissionais da área de atendimento ao público (e.g., comerciante, lojista, restauração, hotelaria, estética; 38%), e operários fabris (36%)”. Também outros estudos, segundo Marta Santos, “apontam no mesmo sentido: a pandemia agravou (e deu visibilidade) a problemas de saúde mental”.

Ainda em relação ao estudo “Saúde Mental em Tempos de Pandemia (SM-COVID19)”, ele indica que “as novas formas de trabalho, nomeadamente o teletrabalho, não estão associadas a sintomatologia ligada a ansiedade e a depressão e 83% dos inquiridos afirmaram que algumas formas alternativas de organização do trabalho podem ser vistas como positivas (e.g., teletrabalho)”. “Outros estudos são menos categóricos”, lembra Marta Santos, “apontando para algumas dificuldades associadas ao teletrabalho (prolongamento da jornada de trabalho, maior interferência com a vida fora do trabalho, dificuldade em aprender coisas novas, dificuldade associada à manutenção de um coletivo de trabalho). Naturalmente, os aspetos mais positivos ou negativos estão muito ancorados com determinadas características do trabalho, dos trabalhadores e das condições/organização do trabalho. Por exemplo, o facto de se ser novato ou expert numa determinada função pode ser determinante na forma como se trabalha em teletrabalho”, refere a psicóloga.

Equilíbrio, coerência e bom senso

Sandra Matos, da Please Disturb Tourism Experts, atua na área do turismo, providenciando formação e mentoring às empresas. “Trabalhamos principalmente programas de liderança, com focus nas human skills. Não associamos a liderança a posições de chefia ou cargos. Acreditamos que todos são líderes desde que tenham a capacidade de influenciar positivamente quem está ao seu redor”.

Dentro do turismo, a área de eventos é associada a intensa pressão e picos de trabalho. Sandra Matos acredita que “para trabalhar em eventos temos de ter um pouco de uma ‘loucura saudável’ e saber lidar com esta adrenalina de forma positiva, como uma motivação e não como algo agressivo”. Um profissional de eventos tem de “gostar do seu trabalho, ter uma paixão por fazer acontecer e desfrutar do resultado final. Saber qual a importância do seu papel, da sua função, para o sucesso de cada evento. Do indivíduo para o coletivo”, refere.

Para uma boa saúde mental, o profissional tem de, em primeiro lugar, cuidar de si. “E não entender isto como um ato de egoísmo, pelo contrário. Apenas se estivermos bem, conseguimos dar aos outros toda a nossa energia e dedicação. Acaba por ser um pouco como a questão das máscaras no avião, primeiro colocamos a nossa e depois ajudamos os outros a colocar a deles”, refere a especialista. Isso pode passar por “manter rituais diários simples nestas épocas de maior pressão como manter uma alimentação correta, dormir bem, aproveitar os tempos de repouso para desligar a mente com outras atividades que não estar preso a um telemóvel, libertar a tensão passeando um pouco na natureza, meditação, fazer algum exercício físico, ter um hobby de que gostamos, passar tempo de qualidade, mesmo que pouco, com famílias e amigos…Desconectar para voltar a conectar”. No fundo, “saber quando se tem de dar o máximo na produção dos eventos e aceitar esses momentos, e saber depois quando se tem que parar e desligar de verdade, para que se consiga recuperar energias para o corpo e a mente”.

O equilíbrio, segundo Sandra Matos, “está nestes momentos de paragem, onde devemos desconectar da adrenalina e conectarmos de forma serena com nós mesmos, com os outros e com a natureza”.

A adrenalina é algo que move muita gente nesta área, mas em que ponto ela se torna prejudicial? A líder da Please Disturb aponta os 4 Cs, algo que trabalha nas formações a equipas e indivíduos.

“Consciência: ter plena consciência do momento em que estamos, em trabalho ou repouso, e aceitar como vamos lidar com cada um destes momentos. Conhecermo‑nos a nós mesmos é fundamental para esta consciência. Saber como vamos lidar com as nossas emoções, como reagimos perante as situações de stress e, acima de tudo, estar presente a 100% em cada momento, em pleno.

Conexão: o equilíbrio passa por nunca perdermos a conexão com nós mesmos, com os outros e com a natureza, quer estejamos em trabalho ou nos momentos de repouso. Isto leva-nos aos rituais diários, que não devem ser descurados, mesmo nos picos de stress. Muitas vezes, basta simplesmente parar uns minutos para respirar, para nos conectarmos de novo e evitar respostas mais impulsivas, por exemplo.

Compromisso: dar o nosso máximo quando estamos a trabalhar, ser a melhor versão de nós mesmos, mas cuidar de nós também em pleno, quando estamos em repouso. A mesma entrega e dedicação que temos na produção de um evento deve ser igual a quando paramos e temos de cuidar de nós, desligar.

Consistência: a nossa vida é feita pelas pequenas decisões e hábitos diários e não por grandes feitos que apenas nos trazem aquela felicidade temporária. Na consistência dos nossos comportamentos, reside o nosso bem-estar. E mais uma vez isto passa pela abordagem holística de cuidarmos de nós.”

Importante é poder antecipar situações de risco, antes de chegar a um estado de exaustão ou burnout. Ao detetar esses sinais, pode ser necessária ajuda profissional. “E nós, seres humanos, temos muita dificuldade em fazer este passo: parar e pedir ajuda. A sociedade tem-nos ‘ensinado’ a estar sempre a produzir, a sermos fortes e resilientes, a não desistir. Mas pedir ajuda não é de todo um sinal de fraqueza, mas de inteligência emocional, para evitar situações mais graves”, lembra Sandra Matos.

E qual pode ser o papel das empresas de eventos? “Tudo se remete à palavra equilíbrio, coerência e bom senso. Cada líder tem de ter a capacidade de saber cuidar das suas equipas e ter uma genuína preocupação com todos os stakeholders com quem trabalha”. O líder deve “entender as necessidades de cada um e harmonizar os seus objetivos pessoais com os objetivos da empresa.

Trabalhar o salário emocional além do salário financeiro, que também tem de ser justo”. Um líder deve promover o trabalho em equipa, “em co-criação e colaboração, para que cada colaborador sinta que pertence a cada projeto e que a sua performance individual é fundamental para o sucesso da equipa, de todos. Saber ouvir, de forma ativa. Estar atento. Mesmo em eventos digitais, somos todos pessoas a trabalhar com pessoas”, remata.

© Cláudia Coutinho de Sousa Redação