Recordar a última visita Papal

11-05-2017

Duas palavras marcariam toda a organização: Bom senso.

Prestes a recebermos o Papa Francisco em Fátima, a Event Point desafia-me a reviver a organização da última visita Papal, que decorreu em 2010. Na altura Bento XVI era o Sumo Pontífice, agora Papa Emérito.

A visita papal de 2010 tinha um duplo sentido: era Visita de Estado e Apostólica. Quase que um 2 em 1. Foi a visita de um Chefe de Estado e do líder religioso.

Bento XVI, à primeira vista, estaria nos antípodas de João Paulo II, a quem sucedeu. No carisma, na simpatia, na proximidade. Tinha uma imagem austera. Tudo isto estava presente nas nossas mentes. Não repetir locais para evitar naturais comparações.

Duas palavras marcariam toda a organização: Bom senso.

Claro que ao bom senso podemos juntar experiência, rigor, método e muito mais, mas é sempre o bom senso que dita e orienta.

Do lado português, toda a visita foi coordenada por D. Carlos Azevedo, então Bispo Auxiliar de Lisboa. Foram decididos os locais das visitas – Lisboa, Porto e Fátima.

Constituíram-se então equipas multidisciplinares. A minha equipa, chefiada pelo Padre Mário Rui Pedras, e composta pelo Francisco Noronha Andrade, e Pedro Duarte Silva ficou com a logística da celebração em Lisboa. Enquanto equipa, assumimos a postura dos 3 D’s – Disponível, Diligente, Discreta.

Feitos os primeiros levantamentos e aprofundadas as ideias e contributos iniciais, desenhou-se um mapa de necessidades logísticas e de parcerias necessárias. É mexer com toda a cidade.

Com o programa já mais materializado, recebemos a primeira visita técnica do Vaticano, com uma equipa altamente profissional no acompanhamento e desenho das visitas papais. Mostraram-se os locais, explicaram-se os procedimentos. “Passámos” no teste. A delegação voltou satisfeita com o trabalho encontrado em Portugal. Haveria de voltar e no regresso já traria o vade mecum, o livro que tem tudo ao pormenor, passo-a-passo, desde que o Papa aterra até à sua partida. Neste livro constam os percursos, as pessoas que apresentarão cumprimentos, os detalhes, todas as referências.

A partir daqui foram centenas de reuniões para agregar, explicar, elucidar, envolver todos os parceiros. Das forças de segurança aos transportes, da Proteção Civil aos movimentos e grupos da Igreja, dos comerciantes à comunicação social, da Presidência da República aos Ministérios – destacando-se o papel do Embaixador José de Bouza Serrano, à data Chefe do Protocolo de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Todas as reuniões começavam com uma apresentação global da visita, dos percursos, dos horários. O objectivo é que todos os intervenientes ficassem com uma ideia global da visita para que depois pudéssemos falar dos pormenores e especificidades de cada área.

O mundo em 2010 era diferente, mas não o suficiente para que o tema Segurança não fosse um dos primeiros da lista. Partindo da premissa de que todos os pormenores contam na segurança, teve início um desafio de bom senso: efectuar todos os percursos a pé, de máquina fotográfica e caderno na mão, com vista ao levantamento e identificação de todos os pontos sensíveis, tais como caixas, tampas de esgoto, saídas do Metropolitano, edifícios devolutos, cruzamentos, contentores, paragens de autocarro. Foi um trabalho orientado e coordenado pelas nossas forças de segurança. Há muito a ideia – errada - que os “seguranças” do Vaticano chegam ao local e mandam. Não é assim. Trabalham sempre em cooperação.

Houve um ponto sempre presente na Organização: criar o menor transtorno possível à vida da Cidade e de quem nela vive e trabalha. O mais fácil é sempre ter uma abordagem securitária excessiva, mas não era esse o estilo nem o perfil de Bento XVI. Com muito planeamento, o plano de segurança em Lisboa tornou-se quase “invisível”, o que só mostra o grau de empenho e profissionalismo de todas as nossas forças de segurança.

Em todas as visitas papais, o Altar das celebrações é um marco identitário. Em Lisboa o Altar, mobiliário e audiovisuais foram adjudicados à Multilem, que desenvolveu o lindíssimo conceito de desenho do altar tendo por base o seixo do rio. A Irmarfer deu corpo à estrutura monumental, imponente mas muito simples. Mica transparente para deixar ver o Tejo; muito branco; chão em alcatifa azul celeste. Para os mais simplistas, esta estrutura era um grande palco com uma tenda por cima. Ao detalhe, foi uma grande obra de engenharia, construída no Cais das Colunas, com todas as limitações do espaço, de frente para a cidade, com o rio e o Cristo Rei como cenário. Por baixo do palco, do altar, havia espaços de apoio à Celebração.

Mas o trabalho da Multilem não ficou por aqui. Com o empenho do Pedro Castro junto de várias empresas, conseguiu-se que todos os percursos ao longo da Cidade tivessem decoração – faixas, pendões, bandeiras, outdoors. E ainda houve tempo e arte para produzir pequenos filmes e uma campanha “Foi o Pai que me ensinou”. Tudo com enorme bom gosto e boa vontade de todos os participantes.

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Claro que também houve momentos de alguma preocupação. O Terreiro do Paço esteve em obras de requalificação quase até à data. Chegou a haver um momento em que se colocou em causa o local por não estar garantido que ficasse pronto a tempo. Ficou. Com tudo novo e a estrear, tudo era uma preocupação – não se podia pisar o chão, não se podiam montar torres, não podiam circular viaturas. Não, não, não. Tudo isso se contornou, com bom senso, alterando alguns planos e materiais, cumprindo o que nos foi pedido, e tudo se tornou possível. Até torres se montaram, carregando todos os materiais à mão para não deixar marcas no piso novo. E não se deixaram. A própria praça teria a sua primeira “prova-de-fogo”, o seu primeiro teste real, no terreno. Para trás ficaram as ilusões idílicas de alguns engenheiros, arquitectos, paisagistas e decisores, muito bons nas suas áreas, mas com alguma falta de visão abrangente da vivência dos espaços idealizados e dos materiais utilizados.

No edifício do Ministério das Finanças, em diversas salas e salões, instalaram-se as Sacristias e as salas de paramentação para o Papa, Cúria, Bispos, Presbíteros, Diáconos e Acólitos. A Sacristia Papal foi instalada no Torreão Nascente do Terreiro do Paço. Um espaço amplo, cheio de colunas, simples, muito bonito, austero, sem qualquer mobiliário. Por sugestão do Pedro Duarte Silva contactou-se a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva para que emprestasse mobiliário para a Sacristia Papal. Como já referi, naturalmente se abriram as portas e as vontades. A visita à Fundação foi quase que uma ida ao IKEA; escolheram-se as peças, sem restrições – mesas, tapeçarias, um lindíssimo quadro com S. Pedro e tudo o que o bom gosto e bom senso permitiram. O resultado foi uma sacristia lindíssima e muito prática. O Torreão apresentava um problema: não tinha instalações sanitárias. Com a generosidade e a mestria do Manuel Mello Breyner e do Miguel Corte Real, da Vimar, num pequeno hall de acesso, elevou-se o chão cerca de um metro –onde se colocaram depósitos- criaram-se paredes que se forraram de branco, instalou-se loiça sanitária e nasceu uma casa-de-banho à altura. Até as toalhas de mãos tinham o monograma com o “B” de Bento, oferecidas pela Teresa Alecrim (ligámos, explicámos o que procurávamos e foi-nos dada carta branca para que nos dirigíssemos à loja do Chiado e levássemos o que fosse necessário. Levámos apenas o necessário). Estando atento aos pormenores, neste caso de idade e de utilização de paramentos, em todos os percursos foram eliminadas escadas e criadas rampas. Atrás de um pormenor vêm mais pormenores. Sabendo que Bento XVI gosta de doce de ovos, à chegada à Sacristia tinha à disposição algumas iguarias da nossa doçaria, à base de ovos, confecionadas pela pastelaria Garrett, no Estoril. O seu dono e nosso amigo, Manuel Casaleiro, não se ficou por aqui e acabou por oferecer o catering a quase 1200 pessoas que passaram por todas as sacristias e salas de paramentação, sala de convidados e imprensa, para que aguentassem as várias horas de espera e de Celebração.

Outra preocupação presente e permanente foi criar as melhores condições possíveis a todos os que se deslocaram ao local para ver o Papa. Disponibilizou-se muita informação –os meios de comunicação social deram uma boa ajuda-, colocaram-se écrans e som nas principais praças adjacentes, para que todos os que não coubessem no Terreiro do Paço não ficassem privados de viver a festa. Até se conseguiu que, no percurso do “papamóvel” entre a Nunciatura Apostólica (onde o Papa pernoitou) e o Terreiro do Paço, se fizesse um desvio pela Praça do Município para que mais pessoas pudessem ter a alegria de ver o Papa.

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Uma celebração religiosa tem as suas regras e rituais, e é também por isso que, enquanto organizadores de Eventos, sendo ou não Católicos ou de qualquer outra religião, devemos sempre procurar saber, participar, aprender. Só assim conseguimos antecipar necessidades, planear e executar. Mesmo sendo Católico, vi e revi as gravações das últimas visitas papais que antecederam Portugal, com um olhar crítico, tomando notas, fazendo perguntas, discutindo ideias, ajustando procedimentos. Esta atitude é a mesma que devemos em qualquer evento - conhecer o Cliente, a sua história, a sua forma de estar, de comunicar, de estar presente. É por isso que gostamos tanto de estar sempre a aprender e quanto mais aprendemos, mais percebemos o pouco que sabemos. Não nascemos ensinados. Em cada evento, seja por nós realizado ou por nós visitado, aprendemos. Quando achamos que sabemos tudo, morremos para a profissão.

Para alem dos pormenores já descritos, são milhares de outros. Entusiasmantes para quem é do meio, impossíveis de descrever em detalhe com limitação de caracteres. Refeições, transportes, convites, convidados, protocolo, apoio médico, hospitais de campanha, envolvimento da Marinha, suporte técnico para os meios de comunicação social nacionais e internacionais, gestão de conflitos, cortes de trânsito, planos de montagem, a concretização, e tantos, tantos outros.

Desenganem-se os que pensam que a preparação de uma visita papal é complicada Toda a sociedade se uniu no apoio à preparação. Tudo se tornou fácil. Todas as portas se abriram.

Como nota final, o desejo interior do bom que seria se encontrássemos na organização dos nossos eventos a boa vontade e o espírito de entreajuda de todas as entidades – tanto públicas, como privadas-, fornecedores, parceiros, colaboradores, meios de comunicação, sociedade em geral.

Feitas as contas, e porque as temos que prestar, toda a visita papal em Lisboa custou pouco mais do que a estrutura do palco, o som e os écrans gigantes. Tudo o resto foi oferecido com muito boa vontade.

A visita de Estado e Apostólica de Bento XVI a Portugal foi um ponto de viragem no seu pontificado. Comentou-se que em Portugal o Papa rejuvenesceu. Acredito mais que se deu a conhecer e que pela proximidade o ficámos a conhecer melhor, longe dos estereótipos que nos impingiram ao longo de alguns anos.

Viva Portugal. Viva o Papa.


Por Bernardo Capucho, director da BPositivo