Sampaio da Nóvoa: A centralidade do Turismo na sociedade do século XXI

14-02-2020

António Sampaio da Nóvoa, Embaixador de Portugal na UNESCO, acredita que o turismo é um fator de moderação numa sociedade cada vez mais fragmentada.

Perante uma plateia de empresários de eventos, animação turística e eventos, no 9º Congresso da APECATE, António Sampaio da Nóvoa, Embaixador de Portugal na UNESCO, deu uma verdadeira aula sobre a relação entre o turismo e a democracia. No final falou à Event Point.

Que mensagens quis deixar a esta plateia de profissionais dos eventos, congressos e animação turística?

O que procurei aqui foi pegar nos tradicionais agrupamentos da Agenda 2030, os objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e de referir-me a quatro desses agrupamentos: as Pessoas, o Planeta, a Prosperidade e a Paz, e tentar perceber como é que o turismo tem responsabilidades em cada um destes quatro domínios. Na protecção das pessoas, na preservação do Planeta, na promoção da prosperidade, e na participação e preparação dos fenómenos da Paz. E a centralidade que o turismo tem hoje nas sociedades do século XXI, na construção dos nossos mapas mentais, da maneira de percebermos o mundo, da maneira de compreendermos o mundo, da maneira de olharmos para o mundo. O turismo tem aqui uma contribuição muito importante. E isto para mim é o centro da democracia. Democracia para mim não é apenas um sistema formal, é um sistema substantivo, e que tem de cuidar das pessoas, do planeta, da prosperidade e da paz e foi isso que procurei aqui dizer.

Referiu uma aparente ou real contradição o facto de estarmos hoje em dia atolados de trabalho, mas termos a necessidade de um escape. O turismo está aqui no meio?

Acho que esse é o grande paradoxo das nossas sociedades. Nós vivemos um tempo permanentemente ocupado, não conseguimos desligar, em grande parte por causa dos telemóveis, do digital, acordamos às 2 da manhã, vamos ver se temos mensagens. Há uma espécie de relação quase obsessiva com o tempo, com o tempo sempre ocupado. Mas depois por outro lado passamos o tempo todo a falar da sociedade do lazer, do tempo livre, na necessidade de tempo livre, na necessidade de termos tempo para falar com os outros, para estarmos calmamente. O turismo está um bocadinho aqui no meio. O turismo dá muitas vezes essa possibilidade, mas muitas vezes mesmo em turismo as pessoas continuam na lógica da sobreocupação. Vão para um sítio qualquer paradisíaco, mas estão ligadas, conectadas, portanto há aqui um paradoxo, com o qual nenhum de nós sabe lidar bem ainda, mas que a dimensão de uma reflexão sobre o que pode ser o turismo, que tipo de turismo é que podemos ter, e que maneiras é que temos de viver esse turismo, mas pode eventualmente ajudar a pensar.

Agora até há uma palavra que se usa muito que é o bleisure: business+leisure…

Os aparelhos que temos agora são muito obsessivos. Nós temos muitas dificuldades em os desligar, e em nos desligarmos dessa realidade, mas acho que certas formas de turismo, não todas, estão a caminhar um pouco nesse sentido e estão a conseguir construir uma relação diferente com o tempo. Acho que a questão do tempo é uma das questões centrais das nossas sociedades. Qual é a nossa relação com o tempo?

Falou também do ambiente que vivemos hoje em dia, do fechamento das sociedades, de que forma o turismo pode servir para nos aproximar?

O turismo devia, e pode, por-nos em contacto com os outros, e na medida que nos põe em contacto com os outros, se nós tivermos disponíveis para isso, interconhecimento, conhecimento entre culturas, entre pessoas, é um valor importantíssimo do turismo. Na verdade estou absolutamente convencido que o grande problema que nós temos pela frente é esse problema da fragmentação das sociedades. Aqueles que acreditam que a Terra não é redonda organizam-se em grupos, só falam entre eles, só confirmam, afirmam e reforçam as suas convicções e não querem saber de mais nada. Aqueles que acreditam na religião x, que há uma conspiração qualquer, só falam entre eles. Aqueles que acreditam no negacionismo do Holocausto têm hoje na Internet grupos que têm um argumentário de milhões de páginas, com fotografias a explicar que nada daquilo existiu e reforçam as suas convicções. Isto é uma coisa dramática nas sociedades atuais. É bom que tenhamos convicções, sejam religiosas, políticas, a convicção é uma coisa boa, mas se nós só vivermos entre aqueles que pensam da mesma maneira do que nós… O turismo põe-nos em contacto com outras maneiras de viver, outras culturas, outras maneiras de pensar.

Mas não lhe parece trágico que quanto mais viajamos, mais o mundo vai ficando fragmentado?

Parece. Mas o turismo é apesar de tudo um elemento que modera um pouco isso. O que provoca isto é essencialmente o digital. A dimensão do digital é uma coisa impressionante a esse nível. Se há 30 anos atrás alguém nos vinha negar o Holocausto, diziamos ‘tu és um tonto, um disparatado’, e esse disparatado hoje tem ao seu dispor milhões de páginas e pode discutir connosco durante horas e horas, e provavelmente sabe mais daquela realidade do que nós próprios, e sente-se legitimado, autorizado, empoderado na sua convicção por essas realidades. E isto é uma coisa absolutamente trágica. O que está a acontecer no Brasil, em muitos países europeus, e também em Portugal, são fenómenos muito preocupantes a esse nível, por isso é que as sociedades atuais precisam muito de ter espaços de diálogo, onde possamos conversar uns com os outros, nem que seja para discordar.

E aí os eventos podem ter um papel positivo, porque apesar da digitalização e de se falar em eventos virtuais, estes continuam a ser espaços de aproximação de pessoas.

E a maneira como eles são organizados, eles proporcionam um contacto, abertura com outras pessoas, claro que são muito importantes.

 

Cláudia Coutinho de Sousa